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Ivanir Corgosinho: A crescente interferência do Legislativo no Orçamento Público é desejável?

Em recente artigo publicado no jornal Estado de Minas, Sérgio Abranches sugere uma interessante explicação para as crescentes dificuldades que o Governo Federal vem enfrentando em suas relações com o Congresso. Segundo ele, “O controle do Congresso sobre a alocação orçamentária leva ao desinteresse do Legislativo pelos recursos que restaram à chefia do Executivo para negociar no Congresso uma coalizão majoritária de governo.”(1) Obviamente, esse “desinteresse” complica dramaticamente a capacidade do Executivo de obter maiorias que só podem ser obtidas a um custo crescente, já que toda concessão que faz passa a ser o piso.

Esta abordagem é profícua e tem o mérito de enfrentar o que considero a causa objetiva do problema. Sérgio Abranches é um cientista político conhecido por cunhar o termo “presidencialismo de coalizão” em trabalho publicado na revista Dados, em 1988(2). O conceito descreve o sistema político brasileiro como uma combinação de um regime presidencialista forte com um sistema multipartidário fragmentado. Neste ambiente, o Executivo precisa formar alianças com diversos partidos políticos para garantir governabilidade e aprovar sua agenda no Congresso Nacional. Assim, o termo aponta para a necessidade de negociações constantes para assegurar a cooperação das bancadas — inclusive das bancadas governistas.

De fato, o presidencialismo brasileiro sempre conferiu ao Executivo um papel central, com presidentes acumulando as funções de chefe de Estado e chefe de governo, e reunindo poderes significativos. Entre eles, a capacidade de editar medidas provisórias (com força de lei temporária), nomear ministros, vetar leis e determinar o orçamento. Trata-se daquilo que autores como Bolívar Lamounier, Florestan Fernandes, Fernando Limongi e Guillermo O’Donnell, dentre outros, trataram como “presidencialismo imperial.”

A Constituição de 1988, porém, fortaleceu o Legislativo, ampliando suas atribuições legislativas e fiscalizadoras. A importância que o Legislativo brasileiro passou a ter ficou evidente nas crises institucionais marcadas pelos impeachments de Fernando Collor (1992) e Dilma Rousseff (2016). Nesse contexto, em 2015, foi promulgada a Emenda Constitucional 86 que tornou obrigatória a execução orçamentária e financeira das emendas parlamentares. A proposta foi aprovada na Câmara com 452 votos a favor e somente 18 contra (3). No Senado, foram 51 votos favoráveis e oito contrários.

Esse processo foi aprofundado no governo de Jair Bolsonaro que vendeu a alma ao Centrão para escapar das ameaças de impeachment. Cabe lembrar que, à época, foram protocolados mais de 50 pedidos no Congresso, justificados por denúncias de corrupção na compra de vacinas contra a COVID-19 e pela postura negacionista do ex-presidente durante a pandemia. Como parte de um amplo acordo, em 2019, o Executivo encaminhou ao Congresso o Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) n.º 51, alterando a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2020 com a criação das chamadas Emendas de Relator. Essa é a origem do famoso “Orçamento Secreto”, uma inovação que permite emendas sem a necessidade de identificação pública dos beneficiários nem critérios claros para a distribuição dos recursos(4), diferentemente do que ocorre com as emendas individuais (que têm autoria identificada) e das emendas de bancada (definidas por estados). Naquele mesmo ano, foram aprovadas as Emendas Constitucionais n.º 100 e n.º 105. A primeira tornou as emendas de bancada igualmente impositivas e a segunda criou as “emendas PIX”. A eleição de Arthur Lira como presidente da Câmara dos Deputados em 2021, com apoio do governo, consolidou a aliança, a consequente hegemonia do Centrão no Congresso e o aumento do controle do Legislativo sobre o Executivo.

Assim, desde 2014, as emendas parlamentares no orçamento federal não apenas aumentaram exponencialmente em quantidade e variedade, como passaram por um processo de rigidez e fixação, que garantiu sua estabilidade e obrigatoriedade de execução. Naquele ano, elas corresponderam a 3,5% do conjunto das despesas discricionárias(5), ou seja, aquelas cuja execução depende de decisão governamental, sem imposição de leis ou da Constituição e que, usualmente, se destinam a investimentos, financiamento de pesquisas e manutenção de serviços públicos não essenciais. No ano passado, elas representaram 20,03% das despesas discricionárias, patamar mantido no orçamento deste ano. Em termos nominais, o orçamento federal de 2025 prevê R$ 50,4 bilhões para emendas parlamentares, montante que supera o orçamento de 32 dos 38 ministérios do governo. Além disso, desse total, R$ 38,9 bilhões são destinados especificamente a emendas impositivas (6).

O volume de recursos sob controle do Congresso, via emendas parlamentares de vários tipos, destoa fortemente do que acontece no resto do mundo, conforme constatado em estudo realizado pelo pesquisador do Insper, Marcos Mendes, e pelo ex-secretário do Orçamento Federal, Hélio Tollini. Comparando o caso brasileiro com 11 países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o estudo conclui que o percentual dedicado às emendas no Brasil é mais do que o dobro do segundo colocado, a Alemanha! “A principal conclusão é de que a forma como o Legislativo brasileiro atua no processo orçamentário é inusitada e, em termos de montante, muito superior ao observado nos demais países analisados. Não se justifica, portanto, a defesa da expansão das emendas parlamentares ao Orçamento sob o argumento de que ‘no mundo todo é assim’”, escreveram os autores (7).

É desnecessário discorrer longamente sobre os efeitos perversos da concentração de recursos orçamentários nas mãos do Legislativo. Embora seja, aparentemente, uma forma de descentralização do poder e de aprofundamento da democracia, esse mecanismo, frequentemente, resulta em fragmentação e ineficiência na execução orçamentária. As emendas, muitas vezes, priorizam interesses locais ou eleitorais, em detrimento de projetos de alcance nacional ou estratégicos, comprometendo a coerência das políticas públicas. Além disso, variedades como as emendas PIX reduzem a transparência, dificultando o controle social e favorecendo práticas clientelistas. Isso enfraquece a gestão fiscal e a capacidade do governo de implementar planos de longo prazo, impactando negativamente o desenvolvimento sustentável do país. Neste sentido, Sérgio Abranches tem razão quando diz que o atual arranjo de poder é “uma anomalia que leva à ingovernabilidade”.

Dai a necessidade e a importância de uma reação do Executivo que, entretanto, além de ser bem ponderada, precisa contar com o apoio resoluto de uma bancada parlamentar convicta e determinada a atuar exemplarmente. Não se trata de propor um retorno à situação anterior, quando o “presidencialismo imperial” tinha total discricionariedade sobre o orçamento para executá-lo ou não. A experiência mundial demonstra que, em países de democracia avançada, o Poder Legislativo pode cumprir um papel relevante na questão orçamentária, em conjunto com o Poder Executivo e, de modo particularmente relevante, no monitoramento da execução. Para isso, é necessária e viável uma “nova cultura orçamentária”, como propõem os pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Manoel Pires e Carolina Resende (8).

Trata-se, a meu ver, de promover esse debate e, para tanto, nossos parlamentares são fundamentais. Sugiro os seguintes objetivos de curto e médio prazo:

1) Reduzir drasticamente a influência individual dos parlamentares na alocação dos recursos, evitando a fragmentação da destinação das verbas. Criar medidas para o fortalecimento das emendas de comissão onde há maiores chances para a representação de interesses coletivos plurais.

2) Vincular as emendas a prioridades nacionais mediante a adoção de regras mais rígidas para a destinação dos recursos e submetendo-as à lógica do Plano Plurianual (PPA), lei que dá as diretrizes para aplicação do orçamento público num horizonte de quatro anos. Um bom exemplo é a obrigatoriedade da destinação de, pelo menos, 50% do valor das emendas individuais a ações e serviços públicos de saúde.

4) Corrigir vícios e dar maior transparência à destinação das emendas. É essencial acabar com a aberração conhecida como “Emendas PIX” e reforçar a exigência de justificativa técnica para cada emenda, incluindo mecanismos detalhados de prestação de contas e auditoria pública. Parte deste objetivo é fortalecer órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Controladoria-Geral da União (CGU).

5) Incentivo à participação popular via a criação de mecanismos para que cidadãos e entidades da sociedade civil possam acompanhar e opinar sobre a destinação das emendas, aumentando a responsabilidade dos parlamentares na escolha dos projetos.

Contagem

No início do segundo semestre do ano passado, vereadores de Contagem tentaram, sem êxito, aumentar o valor de suas emendas impositivas individuais no orçamento da Prefeitura. Atualmente, essas emendas correspondem a 1% da receita corrente líquida do município, totalizando R$ 27 milhões anuais, ou R$ 1,2 milhão por mandato. A proposta era elevar esse percentual para 2%, o que equivaleria a R$ 2,4 milhões por vereador, aumentando o montante anual para R$ 54 milhões. Se aprovada, a medida poderia comprometer serviços que dependem exclusivamente do tesouro municipal, como a maioria dos serviços de manutenção e investimentos.

Na ocasião, 16 vereadores apresentaram, por meio de uma emenda de liderança, uma proposta de alteração da Lei Orçamentária Anual (LOA) para aumentar o percentual. A proposta obteve parecer favorável da Procuradoria da Câmara Municipal e da Comissão de Constituição e Justiça, sendo aprovada pelo plenário e encaminhada para sanção. Apenas os vereadores Abne Motta (PRD), Alex Chodi (União Brasil), Moara Saboia (PT) e Silvinha Dudu (PV) votaram contra a inclusão da emenda na lei.

A prefeita Marília Campos vetou a decisão da Câmara e sinalizou que poderia recorrer à Justiça caso o veto fosse derrubado. Os vereadores, por sua vez, optaram por respeitar o veto, possivelmente devido ao receio das repercussões negativas de um confronto com a prefeita sobre este tema às vésperas do período eleitoral.

Embora 50% das emendas impositivas individuais devam ser destinados à saúde, conforme determina a Emenda Constitucional 86, a maior parte do restante é direcionada a ONGs ligadas aos vereadores. Essas instituições, verdadeiras extensões de seus mandatos, contribuem para consolidar suas bases eleitorais no esforço contínuo pela reeleição. Argumenta-se que, ao oferecerem serviços de utilidade pública, especialmente nas áreas de saúde e assistência social, essas ONGs também funcionam como um apoio indireto à Prefeitura, que, de outra forma, teria que criar mais equipamentos próprios. Esse é um debate que merece aprofundamento.

***

A crise nas relações entre o Executivo e o Congresso revela um sistema político em descompasso com as demandas de governabilidade e de representação democrática. Acredito que a raiz deste problema está, como sugere Sérgio Abranches, no crescente controle do orçamento pelo Congresso, via uma variedade de formas de emendas impositivas. Se o Executivo é obrigado a executar as emendas aprovadas pelo Legislativo, não há estímulos para o diálogo e a cooperação. Não se trata, como já afirmei, de propor um retorno à situação anterior, quando o “presidencialismo imperial” tinha total discricionariedade sobre o orçamento para executá-lo ou não. Por outro lado, é necessário reconhecer que o instrumento das emendas parlamentares tem sido marcado pela falta de transparência, ausência de critérios técnicos, clientelismo e pulverização de recursos públicos. São, portanto, necessárias mudanças que deem mais transparência, eficácia e coerência estratégica ao processo de alocação das verbas públicas por parte dos parlamentares.

Ivanir Corgosinho é sociólogo.

NOTAS

(1) Ver: Brasil ficou ingovernável com a anomalia chamada governo congressual. Jornal Estado de Minas, 28/04/2025. Disponível em https://www.em.com.br/colunistas/sergio-abranches/2025/04/7127027-brasil-ficou-ingovernavel-com-a-anomalia-chamada-governo-congressual.html

(2) ABRANCHES, Sérgio Henrique. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Dados vol. 31 n. 1 Rio de Janeiro 1988. Disponível em https://dados.iesp.uerj.br/es/artigos/?id=348

(3)Ver: ‘Marco zero’ da disparada de emendas faz 10 anos e transforma política no Brasil. Folha de São Paulo, 15/03/2025

(4) Em 2022, as emendas de relator foram declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e suprimidas na Emenda Constitucional nº 126.

(5) SOUZA, P. Despesas discricionárias e emendas parlamentares (2014 a 2024). Nota Técnica 57, IFI – Instituição Federal Independente, 2024.

(6) Ver: Emendas parlamentares: entenda os R$ 50 bilhões nas mãos do Congresso. Congresso em foco, 01/05/2025.

(7) TOLLINI, Hélio; MENDES, Marcos. É assim em todo lugar? Emendas parlamentares no Brasil e em 11 países da OCDE. São Paulo: Insper, 2024. Disponível em https://repositorio.insper.edu.br/entities/publication/bfd34354-650a-41fe-8481-f317d9d474bf

(8) SCHYMURA, Luiz Guilherme. Aumento de emendas sinaliza necessidade de nova cultura orçamentária. Carta do IBRE. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2024.

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