Vivemos uma época de grandes conflitos, impulsionados pelas transformações estruturais do sistema capitalista nas últimas décadas. O neoliberalismo, por exemplo, falhou na promessa de promover um novo ciclo de desenvolvimento econômico sustentável e inclusivo, levando à crise da globalização com o recrudescimento da concorrência predatória entre empresas e países, aumento das desigualdades e o retorno da geopolítica, inclusive na forma de guerras.
Paralelamente, as novas tecnologias de informação e de comunicação, a automação, a robótica, a inteligência artificial, dentre outras inovações, têm permitido maior produtividade, maior conectividade e facilitado o trânsito de pessoas e mercadorias em escala global. Mas, também favorecem uma brutal precarização do trabalho, como ocorre com os motoristas de aplicativos, dentre outros exemplos.
Finalmente, o advento das chamadas redes sociais revolucionou a forma como nos comunicamos, tornando a produção e disseminação de informações mais acessível do que nunca. Atualmente, qualquer indivíduo pode criar conteúdo, opinar sobre temas públicos e, eventualmente, alcançar audiências amplas, o que representa um inegável avanço na democratização das comunicações. Todavia, essa nova dinâmica também trouxe desafios importantes. Entre eles, a formação das chamadas “bolhas de opinião”, resultantes da tendência dos indivíduos a se refugiarem onde encontram reforço para suas crenças preexistentes. Essa tendência é reforçada pelos algoritmos programados para capturar e fidelizar usuários entregando sempre mais dos conteúdos que preferem. Como resultado, temos um esvaziamento dos espaços de debate provocado pelo insulamento de nichos de opinião ultra homogêneos, a cristalização das divergências, além da disseminação de fake news, boatos e desinformação.
Tais transformações desafiam os mecanismos tradicionais de coordenação social, como o Estado, partidos, a mídia, as religiões e os sistemas educacionais, que já não conseguem exercer suas funções de orientação e tutela com a mesma eficiência anterior. Daí a emergência de um mal-estar difuso e coletivo que leva a situações próximas ao estado de anomia social definido por Durkheim como um fenômeno sociológico ligado à falta de normas sociais claras, onde os indivíduos se sentem desconectados e sem um guia moral positivo que oriente suas ações (DURKHEIM,2013).
É neste contexto que ressurgem, em diversas partes do mundo, movimentos sociais autoritários, de extrema direita, alguns com traços neofascistas. Esses movimentos se apresentam como alternativas “antissistêmicas” e buscam conquistar espaços de poder mobilizando sentimentos como o medo, a raiva e o ressentimento. Para capitalizar o descontentamento popular, canalizam esses afetos negativos contra minorias, instituições democráticas e valores progressistas. Utilizam narrativas autoritárias, nacionalistas e excludentes onde, com frequência, há um “inimigo” cuja derrota é a imprescindível para a retomada de um status quo prévio, supostamente perdido. Esse inimigo pode assumir a forma de imigrantes, minorias, comunistas, corrupção ou qualquer outra entidade mítica, dependendo das circunstâncias.
Em decorrência, há também o fortalecimento dos partidos de extrema direita no campo eleitoral levando ao fenômeno da chamada “polarização”. Comumente vista como um problema político-eleitoral reduzido ao embate entre “esquerda e direita” na democrática disputa por votos, a polarização é, em verdade, sintoma de um problema mais profundo que precisa ser compreendido em suas raízes econômicas, culturais e tecnológicas — e não apenas em seus efeitos mais visíveis. Trata-se, de fato, de uma forma de manifestação do novo ciclo de regressão democrática mundial, alimentado pelo esvaziamento do debate público e enfraquecimento das instituições de coordenação, controle e mediação.
Nesse sentido, é crucial entender que a polarização político-partidária, como ocorre hoje, é, antes de tudo, uma estratégia deliberada da extrema direita com propósitos destrutivos. As palavras do ex-presidente Jair Bolsonaro em 2019, registradas pelo jornal O Globo, são emblemáticas: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós pretendemos construir coisas para o nosso povo. Nós temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer” (O Globo, 2019).
Também é fundamental entender que, apesar do destaque que ganha na grande mídia e do mau humor difuso de nossa época, a polarização como fenômeno político-partidário não mobiliza nem orienta a maioria da população. Pesquisas mostram que a maioria das pessoas não tem preferências partidárias claras ou adesão consistente a doutrinas ideológicas (ALMEIDA, 2008). Em geral, os indivíduos formam opiniões fragmentadas e por vezes contraditórias, orientando-se mais por experiências pessoais, afetos ou circunstâncias imediatas do que por convicções estruturadas. Assim, a inclinação para um dos lados pode ser fortemente influenciada por fatores conjunturais, como a ocorrência de crises, de eleições nacionais onde a disputa ocorre entre lideranças fortes que despertam lealdades afetivas (como Lula e Bolsonaro) e, ainda, quando a mídia pauta temas que provocam forte mobilização social, como as privatizações ou o aborto, dentre outras possibilidades.
Isso explica por que, mesmo em contextos de radicalização do debate público, grande parte da população permanece alheia ou desinteressada. A vida cotidiana segue pautada por preocupações práticas — emprego, segurança, acesso a serviços, bem-estar familiar — que muitas vezes não se conectam diretamente com os marcos ideológicos em disputa.
Tudo indica, enfim, que a intensa confrontação na esfera política reflete mais o comportamento de minorias politicamente ativas e engajadas — tanto à direita quanto à esquerda — que o animus do conjunto da sociedade.
Torna-se evidente, desta forma, o duplo equívoco de algumas lideranças de esquerda que veem a estratégia da polarização como principal instrumento de disputa eleitoral. Primeiro, trata-se de um erro tático. Ao centrar o discurso no combate à extrema direita, perde-se o diálogo com o centro e os indecisos, decisivos em eleições majoritárias uma vez que os extremos ideológicos, sozinhos, não têm força para vencer.
Mais, mais grave, porém, é o dano estrutural que a estratégia da polarização inflige ao já precário projeto emancipador acalentado pela esquerda. O ideal da felicidade coletiva — que visa a superação das desigualdades, da opressão e da exclusão — exige a construção de uma consciência política ampla, capaz de unir diferentes setores da sociedade em torno de objetivos comuns. Pede, portanto, um ambiente que pode ser tenso, mas que precisa ser amistoso, pacificador e propício à troca de opiniões e pactuação de consensos.
Há uma passagem de “Que fazer”, de Lênin que sempre me encantou. Ao discutir a formação da “consciência revolucionária”, o autor argumenta que “a consciência da classe operária não pode ser uma verdadeira consciência política se os operários não estão habituados a reagir contra todos os casos de arbitrariedade e opressão, de violências e abusos de toda a espécie, quaisquer que sejam as classes afetadas” (LENIN, V. I., 2020). Em outras palavras, a emancipação social exige uma compreensão profunda das relações políticas e sociais que estruturam o sistema capitalista, bem como uma prática política que promova a solidariedade universal e transcenda divisões sectárias — precisamente o oposto do que a polarização promove.
Nesta perspectiva, me parece bastante evidente que a estratégia da polarização interessa muito mais às posições intransigentes, que não estão interessadas em compartilhar o poder. O extremismo prospera nos ambientes rarefeitos em ideias e nuanças, onde a verdade se tornou fluida e os fatos se tornam cativos das narrativas. Essa dinâmica envenena a cultura política, mina o espírito público e enfraquece instituições. Em vez de fortalecer a democracia, abre caminho para o autoritarismo.
Diante desse cenário, é urgente que a esquerda redescubra sua vocação universalista e humanista, construindo uma narrativa que dialogue com as angústias concretas da maioria — emprego, saúde, educação, segurança. Além disso, é fundamental compreender que, para sobreviver, a democracia precisa voltar a ser sentida como um meio eficaz para melhorar a vida das pessoas. Do contrário, seguirá perdendo adesão e legitimidade. A esse respeito, vale a pena ver a recente pesquisa “A democracia que temos e a democracia que queremos“, realizada pelo Ipespe (Instituto de Pesquisas Sociais, Políticas e Econômicas) mostrando que, passados 40 anos do fim da ditadura militar (1964-1985), a maioria dos brasileiros prefere a democracia, mas está insatisfeita com ela (IPESPE, 2024.). Isso significa que é necessário revitalizar as instituições democráticas por meio de formas inovadoras que as ampliem e aprofundem. Isso pode incluir a criação de espaços participativos como conselhos populares, plataformas digitais de deliberação cidadã e mecanismos de democracia direta, que empoderem as pessoas e as envolvam ativamente na tomada de decisões.
Finalmente, há a questão da transparência e da prestação de contas. No caso da gestão pública, e para a esquerda em sentido mais amplo, a transparência é muito mais que um mecanismo técnico de accountability e ou um recurso moral no combate à corrupção. É uma condição do processo social que molda a maneira como indivíduos e comunidades percebem a realidade, constroem significados coletivos e se engajam em um projeto comum. Transparência e prestação de contas, portanto, estão na base da construção das relações de confiança entre cidadãos e lideranças pois implicam o compartilhamento de princípios, valores e leitura da realidade.
É neste sentido que a experiência de Contagem tem a contribuir.
Em artigo publicado na Folha de São Paulo, que reproduzimos nesta edição do blog, Maria Hermínia Tavares de Almeida discute as dificuldades que o campo progressista enfrenta para convencer o eleitorado da superioridade de suas políticas. E cita os casos de Contagem e do Recife como exemplos a serem seguidos. Diz ela: “São os casos de Marília Campos, prefeita petista de Contagem, em Minas, já no seu quarto mandato, e de João Campos (sem parentesco), prefeito reeleito do Recife —ambos beirando os 80% dos votos no primeiro turno. A ênfase na eficiência de gestão; na entrega de bens e serviços; na prestação diária de contas pelas redes sociais; na capacidade de construir coalizões políticas amplas; enfim, na recusa das discussões que polarizam e dividem os eleitores parece apontar para o advento de soluções progressistas mais sintonizadas com as aspirações do brasileiro comum e mais distantes das ‘guerras culturais’ tão a gosto do bolsonarismo” (TAVARES,2025).
De fato, em Contagem conseguimos grande êxito no esforço de isolar e derrotar a extrema direita no último processo eleitoral porque já vinhamos praticando um projeto em tudo contrário à polarização: foco nas questões locais e nas demandas dos moradores, criação de inúmeros canais para a participação dos moradores nos processos de decisão, transparência nos atos de governo e prestação regular de contas, amplas alianças na busca de recursos para o financiamento da cidade, implementação de um projeto desenvolvimentista inclusivo, defesa da tolerância e da pacificação das relações, presença física assídua junto às comunidades, etc. À frente desse projeto, uma liderança amplamente testada nas lutas, respeitada pelos moradores e profundamente identificada com as aspirações, alegrias e dores da comunidade: a prefeita Marília Campos.
Finalizando, não há dúvida que a luta contra a extrema direita, em especial contra neofascismo, é um desafio incontornável do nosso tempo. Trata-se de uma batalha essencial para defender avanços duramente conquistados com a democracia, como as liberdades individuais, os direitos sociais e a pluralidade que estão sob grave ameaça. Não é demais relembrar aqui a velha máxima “socialismo ou barbárie”. Mas, acredito, não há como vencer essa batalha fazendo o jogo da polarização. A superação da extrema direita passa por romper com essa lógica — na linguagem, na prática e na imaginação política. A esquerda só será capaz de derrotar o neofascismo como um modo de vida se souber oferecer um horizonte de sentido que vá além da indignação e da confrontação, que mobilize esperanças reais e concretas para a maioria social. Isso exige menos disputa de narrativas e mais construção de vínculos; menos guerra cultural e mais presença cotidiana; menos retórica ideológica e mais projeto nacional. O futuro não será fruto do embate permanente entre polos inconciliáveis, mas de uma cultura política baseada no propósito comum e na confiança mútua.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
NOTAS
ALMEIDA, Alberto Carlos. A cabeça do eleitor: estratégia de campanha, pesquisa e vitória eleitoral. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.
DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
LENIN, V. I. Que fazer?: problemas candentes do nosso movimento. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2020.
IPESPE. A democracia que temos e a democracia que queremos. Dezembro 2024. Disponível em: https://static.poder360.com.br/2025/05/PESQUISA-DEMOCRACIA_10Dez2024-_vf-.pdf
O GLOBO. Antes de construir é preciso ‘desconstruir muita coisa’ no Brasil, diz Bolsonaro nos EUA. O Globo, 18 mar. 2019. Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/antes-de-construir-preciso-desconstruir-muita-coisa-no-brasil-diz-bolsonaro-nos-eua-23530792
TAVARES, Maria Hermínia. Esquerda de resultados. Folha de São Paulo, 7 maio 2025. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/maria-herminia-tavares/2025/05/esquerda-de-resultados.shtml