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Ivanir Corgosinho: Anotações sobre a questão da teoria

Tenho abordado nesses artigos as transformações pelas quais o sistema capitalista vem passando na contemporaneidade — globalização, revolução digital, mudanças no mundo do trabalho, etc. — e como elas têm modificado nossos modos de ser e de viver. Também tenho falado, a exemplo do artigo “O interregno”, sobre as dificuldades para a compreensão deste momento, visto que se trata de um processo em curso e de longo prazo.

Neste artigo, abordo especificamente o desafio que essas transformações representam para o pensamento de esquerda de orientação marxista.

Há quase duzentos anos, os socialistas e a esquerda de forma geral, têm orientado sua práxis política com base em quatro pressupostos fundamentais. Juntos, eles fornecem uma explicação plausível da realidade a partir de sua materialidade objetiva, uma proposta factível de estratégia de ação transformadora e uma justificativa racional para a sua própria existência.

Refiro-me às teorias da mais-valia, ou mais-valor, e à teoria da luta de classes, ambas desenvolvidas por Karl Marx, e às teorias da revolução social e do partido de vanguarda, propostas pelo revolucionário russo Vladimir Ilyich Ulianov, mais conhecido como Lenin ou Lenine.

Estas quatro dimensões estão profundamente embricadas no imaginário socialista. Em termos simples, a teoria da mais-valia revela o método de exploração do trabalho que é intrínseco ao sistema capitalista. Demonstra que os trabalhadores são contratados e pagos por uma determinada jornada de trabalho. Todavia, no curso desta jornada, produzem um valor excedente ao que recebem na forma de salário. Esse valor excedente, a mais-valia, é apropriado pelo empregador que, com ele, banca os custos de produção (como insumos e impostos), os reinvestimentos e seu lucro. A mais-valia é, portanto, a fonte original do processo de acumulação capitalista e da formação do conjunto da riqueza socialmente produzida.

Esse processo, no entanto, não ocorre sem tensões. O conceito de luta de classes retrata o conflito fundamental e estrutural entre trabalhadores e patrões em torno do excedente. Neste conflito, os trabalhadores buscam melhorar seus salários e condições de trabalho, reduzindo o montante da mais-valia apropriado pelos empregadores, enquanto estes lutam para maximizar esse excedente e, assim, embolsar lucros maiores. Embora afete, principal e diretamente, o proletariado e a burguesia, esse conflito, entretanto, perpassa toda a vida social e está presente, por exemplo, além da luta sindical, nos antagonismos envolvendo a distribuição da carga tributária, na alta inflacionária dos preços, nos embates sobre as prioridades do orçamento público, etc.

A ideia da revolução social, por sua vez, deriva da percepção que, dificilmente, os capitalistas abrirão mão do pleno controle sobre o excedente. Antes mesmo de Marx, movimentos sociais libertários já defendiam a necessidade de uma ruptura radical a fim de “expropriar os expropriadores”. A violenta repressão às revoltas operárias de 1848 na Europa, quando demandas por reformas sociais foram sufocadas por forças militares, apenas serviu para consolidar essa convicção.

Foi Lenin, no entanto, quem abordou este problema desde um ponto de vista operacional. Com ele, a revolução passou a ser um objetivo a ser perseguido e estrategicamente planejado, consoante a realidade particular de cada país. Sua realização, explica Lenin em várias obras, pressupõe um trabalho sistemático de mobilização, organização e educação popular, tendo em vista a formação da consciência socialista e a transformação da classe operária em sujeito político. Exige também um atento e permanente estudo das condições da luta no sentido de perceber o momento mais oportuno para a ação.

Estas tarefas, ainda conforme o líder bolchevique, devem ser realizadas por uma organização especial, um partido político distinto dos demais por ser de vanguarda, fortemente hierárquico, formado por militantes qualificados e disciplinados. Este partido de “quadros” deve se esforçar para assumir a direção dos trabalhadores e seus aliados tanto na tomada do poder, quanto na construção de uma nova ordem social. Com Lenin, enfim, como escreveu o professor Florestan Fernandes, o marxismo deixa de ser uma teoria e se converte em “processo revolucionário real”.(1)

Estas teses continuam válidas e atuais?

Críticos do socialismo argumentam que essas ideias, formuladas na virada do século XIX para o XX, não se encaixam no mundo atual e, de fato, é preciso reconhecer que várias inovações ocorridas no capitalismo contemporâneo representam desafios importantes para a teoria socialista. Vejamos.

A teoria da Mais Valia — A centralidade do trabalho humano na explicação da produção de valor vem sendo questionada com base na realidade das fábricas robotizadas e sistemas de IA generativa que geram conteúdo sem, alegadamente, a intervenção direta dos trabalhadores. A expansão do trabalho autônomo e da uberização também são fontes de questionamento (pela via do chamado “empreendedorismo”). Se uma máquina ou algoritmo podem produzir bens e conteúdo sem intervenção direta de trabalhadores, como sustentar que o lucro vem da exploração do trabalho pela apropriação do excedente pelos patrões? Neste contexto, ganham espaço teorias que atribuem ao capital fixo (máquinas, software) a condição de fonte autônoma de valor, algo que o neoliberalismo abraça com o propósito de desqualificar a luta contra a exploração, do mesmo modo como estimula a ideologia do empreendedorismo.

Luta de Classes — Até onde sei, somente correntes teóricas liberais ultrarradicais negam a existência de um conflito distributivo na repartição da riqueza socialmente produzida. Não falta, entretanto, quem negue o caráter estrutural deste conflito, ou seja, sua manifestação na forma de luta de classes. Isso se deve à chamada reestruturação produtiva, que tem levado à desconcentração das unidades empresariais, à maior horizontalização das decisões e à fragmentação do processo de trabalho. É preciso notar, ainda, que o capitalismo contemporâneo, com suas redes globais, algoritmos e elites difusas (como bilionários da tecnologia ou fundos de investimento), não oferece mais um “inimigo” tão visível quanto o capitalismo industrial oferecia. Estes fenômenos colaboram para a dissolução da noção de classe como uma estrutura homogênea de longa duração. Neste contexto, o conflito de interesses passa a ser visto mais como uma disputa fragmentada, individualizada ou conjuntural. Acrescente-se a ascensão de outras clivagens e a eclosão de conflitos baseados em raça, gênero, meio ambiente ou identidade cultural, que também ofuscam a perspectiva de classe.

A revolução — A consolidação de regimes democráticos em boa parte dos países ocidentais, bem como as transformações no mundo do trabalho, levaram a um forte arrefecimento do ethos revolucionário no campo socialista. Contribuem para isto, a conquista gradual de mais e novos direitos para os trabalhadores e para os pobres; o fortalecimento das instituições voltadas para a canalização do dissenso e negociação de conflitos (eleições, partidos políticos, sindicatos e liberdade de expressão); a ascensão de uma classe média significativa, que deve representar 63% da população mundial em 2030(2); a formação de mercados de consumo de massa e o acesso à mobilidade social (mesmo que limitada), especialmente via a educação.

Outro importante fator de aquietação do espírito revolucionário é o aumento exponencial da capacidade repressiva dos Estados, com um aparato militar e de segurança cada vez mais sofisticado e tecnologicamente avançado, além da adoção de formas mais sutis e invisíveis de controle social.

A questão do partido — Obviamente, a improbabilidade da revolução social torna a organização de um partido de vanguarda, ao estilo bolchevique, um esforço demasiadamente dispendioso para ser tentado sem hesitações. No entanto, a questão vai além da simples praticidade. A formação do partido leninista pressupõe forte clareza e unidade de seus membros quanto às justificativas do projeto. O problema é que as transformações em curso no sistema capitalista ainda carecem de uma análise crítica profunda, o que gera grande divergência teórica, metodológica e ideológica na esquerda. Um exemplo disso é a variedade de termos que vêm sendo criados na tentativa de identificar a atual fase de desenvolvimento do sistema: “anarco capitalismo”, “capitalismo cognitivo”, “capitalismo de plataforma”, “tecno feudalismo”, “turbo capitalismo”, “capitalismo iliberal”, “necrocapitalismo”, dentre outros exemplos, são sintomáticos de uma grande vitalidade intelectual, mas, também, de uma barafunda teórica e metodológica que carece de um elemento sintetizador.

Finalmente, as lições da história não podem ser esquecidas. Os experimentos socialistas inspirados pelo modelo bolchevique, de forma geral, deixaram um legado ambíguo e polêmico, geralmente associado a denúncias de autoritarismo, formação de novas elites opulentas e repressão, enfraquecendo a confiança da militância em modelos verticalizados que concentram poder em mãos de alguns poucos.

* * *

As questões que cercam o futuro do socialismo não são meros debates acadêmicos, sem consequências na vida prática. Houve tempo em que o campo socialista oferecia ao mundo uma crítica profunda ao capitalismo e uma alternativa concreta para sua superação, capaz de atrair e empolgar militantes tanto por seu vigor teórico quanto por alimentar esperanças numa utopia plausível. O debate ocorria nos cafés, ecoava nos jornais, era reproduzido em cartilhas e brochuras populares e em grupos de discussão, ganhando dimensões que extrapolavam o círculo mais restrito dos intelectuais. Aliás, muitos pensadores da vanguarda intelectual tinham participação ativa nas organizações e movimentos sociais, na tentativa de unir teoria e prática. O próprio Marx é exemplo disso. Ele foi um dos fundadores da Liga dos Comunistas, jornalista combativo e passou boa parte da vida esquivando-se da repressão política.

Hoje, a maioria dos intelectuais admirados pela esquerda está ligada à academia ou são “articulistas” dos grandes jornais, quase sempre sem qualquer vínculo orgânico com a militância político-partidária e com a participação direta nos movimentos sociais.

Muitos movimentos que carregam a bandeira socialista ou anticapitalista estão fragmentados, carecem de apoio popular e não conseguem articular uma proposta convincente para alterar o status quo. Ao mesmo tempo, os governos de esquerda parecem incapazes de escapar da armadilha da governabilidade dentro das regras do mercado global. Seus esforços se concentram em implementar medidas de redistribuição de renda — importantes, porém paliativas para a pobreza e a desigualdade social que, aliás, está cada vez maior.

Nos falta um arcabouço teórico que dê conta da chamada “realidade pós-industrial”, financeirizada e digital do capitalismo, e uma estratégia para a luta antissistêmica capaz de despertar a paixão da militância e apoio popular.

É sempre bom lembrar que, historicamente, o marxismo levou décadas para se consolidar como teoria e prática e, portanto, não se espera que o campo de esquerda consiga elucidar os dilemas da contemporaneidade em tempo real. Haverá, sim, um período de maturação, enquanto a esquerda reescreve sua justificativa. Todavia, o dilema é incontornável: ou o campo socialista abraça esta tarefa, ou estará condenado a um “socialismo de baixa combustão” ou, pior, a mergulhar na irrelevância.

Ivanir Corgosinho é sociólogo

NOTAS

(1)Apresentação de Florestan Fernandes ao livro “Que Fazer?” de Lenin. Publicação a Editora Crucite, 1978.

(2) A classe média é maioria no mundo pela primeira vez na história, artigo de José Eustáquio Diniz Alves—https://www.ecodebate.com.br/2018/10/26/a-classe-media-e-maioria-no-mundo-pela-primeira-vez-na-historia-artigo-de-jose-eustaquio-diniz-alves/

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