Recebi algumas críticas sobre meu último artigo, “Anotações sobre a questão da teoria”. Disseram que apontei o problema, mas não apresentei soluções, as eventuais saídas. Seria, nesse sentido, um artigo desesperançoso.
Essa, no entanto, nunca foi minha intenção. Não quis ser pessimista, mas, tampouco, pretendi entrar no mérito do debate sobre soluções. Meu objetivo era outro: chamar a atenção para a profundidade e radicalidade teórica da crise que atravessamos e suas repercussões sobre o pensamento crítico, especialmente o de orientação marxista.
Para quem quiser ter uma noção mais precisa sobre o que digo, recomendo a leitura da entrevista que o professor titular de Filosofia da Unicamp e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), Marcos Nobre, concedeu ao jornal O Estado de São Paulo no último dia 15/03. A entrevista é aberta a não assinantes e pode ser acessada livremente.(1)
Nessa entrevista, Nobre afirma: “A metáfora da polarização implica dois polos no mesmo campo magnético. Esse mundo acabou. O que nós temos hoje são dois campos diferentes, sem um terreno comum a partir do qual se polariza. Há uma divisão sobre como deve ser o futuro, são duas concepções incompatíveis”.
E acrescenta:
“Como elas não estão ainda perfeitamente delineadas, a gente tem esse tipo de acirramento também. Há uma transição para uma nova forma de regulação global, e essa construção está sendo feita no embate, no conflito entre essas duas visões”.
Tenho certa afinidade com o diagnóstico de Marcos Nobre e receio pela qualidade da vida da maioria das pessoas num futuro que nem está tão distante assim. Sou um apreciador de filmes de ficção científica que tentam fazer algum prognóstico sobre o futuro da humanidade, e acompanho a evolução do gênero com muita apreensão. Um mundo distópico, no qual megacorporações controlam os governos; os ambientes urbanos estão degradados e inseguros; a maioria trabalha em condições de semiescravidão; a vigilância digital é onipresente e uma elite nababesca e hedonista desfruta do bem viver acima da lei, vem sendo retratado pelo cinema desde Metrópolis, produzido por Fritz Lang em 1927. E a coisa só piora.
Dizer que, para evitar esse futuro, é preciso agir agora, é mera tautologia.
Mas a pergunta essencial é: que fazer?
Naturalmente, para cada uma das questões que apontei em “Anotações(…)”, há intelectuais de esquerda produzindo respostas. São pensadores que investigam as evidências necessárias para demonstrar que, mesmo com a automação e outras mudanças tecnológicas, o capitalismo não eliminou a exploração do trabalho e ainda se sustenta na extração de mais-valia, embora de formas novas e mais complexas. É o caso, por exemplo, dentre outros, de David Harvey, autor do já clássico “Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural”.
Não é necessário estender a listagem de nomes. Basta dizer que o campo intelectual de esquerda tem se esforçado no sentido de compreender as novas dinâmicas sociais e que coisas boas têm aparecido, ainda que nem sempre.
O problema é que não é possível resolver os dilemas da esquerda somente no plano teórico.
Como mencionei no artigo citado, hoje “a maioria dos intelectuais admirados pela esquerda está ligada à academia ou são ‘articulistas’ dos grandes jornais, quase sempre sem qualquer vínculo orgânico com a militância político-partidária e com a participação direta nos movimentos sociais”.
Ora, como Marx observou, a produção de ideias pode nos levar a novas ideias, mas não pode nos levar a uma nova ordem de coisas. “(…) a arma da crítica não pode substituir a crítica das armas, o poder material tem de ser derrubado pelo poder material”, escreveu.(2)
Todavia, Marx também afirma que a teoria pode se tornar uma força material se for apropriada coletivamente e transformada em movimento social. Para isso, a teoria precisa dialogar com as necessidades materiais e espirituais das pessoas que, por sua vez, devem participar, de alguma forma, da produção teórica. O comunismo, o socialismo e a social-democracia são exemplos disso. São teorias que se materializam sob a forma de movimentos histórico-sociais.
Neste sentido, a relação teoria/prática é fundamental. A teoria tenciona a prática, dando-lhe sentido e substância, ao mesmo tempo em que a prática coloca a teoria em xeque, impulsionando seu avanço e refinamento. Trata-se do que a filosofia chama de práxis.
Não é demais insistir quanto aos riscos da divisão dos movimentos sociais entre os que “pensam/dirigem” e os militantes “práticos”, que “executam”. Esta é a origem de processos de burocratização que, fatalmente, levam ao fracasso de experimentos transformadores, especialmente devido à formação de direções autoritárias e com interesses distintos daqueles que deveriam representar.
O desafio, portanto, não é somente compreender a crise, ainda que este não seja um problema menor. A reconstrução da esperança numa nova utopia requer uma práxis que una pensamento e ação de maneira orgânica e democrática. Os movimentos sociais e a militância política devem ser, eles mesmos, espaços de produção intelectual onde as necessidades da maioria explorada tanto inspirem, quanto moldem as ideias transformadoras, lapidando suas arestas e permitindo correções de rumo. Em lugar do intelectual solitário, enclausurado em gabinetes, construamos o “intelectual coletivo”, tal como imaginado por Pierre Bourdieu: “(…) o intelectual coletivo (…) pode desempenhar um papel de parteiro, assistindo a dinâmica dos grupos em trabalho no seu esforço por exprimirem, e no mesmo ato descobrirem, aquilo que são e aquilo em que poderiam ou deveriam tornar-se, e contribuindo para a recoleção e para a acumulação do imenso saber social sobre o mundo social do qual este preenche“. (3) Somente assim a teoria poderá tornar-se uma força material capaz de enfrentar as distopias que assombram o horizonte.
Esta é uma questão que deve ser tematizada na busca de soluções operacionais tanto por parte dos partidos de esquerda quanto dos movimentos sociais e indivíduos. O PT Contagem, recentemente, criou um Grupo de Estudos. É uma iniciativa que deve ser saudada. Desde 2022, eu e José Prata mantemos o Blog do Zé Prata e Ivanir, um espaço para difundir a produção intelectual local, especialmente aquela que incide sobre a gestão municipal, além de divulgar ideias de outros autores que acrescentam ao debate. Acredito que seja este o caminho. Que venham outras iniciativas: fóruns, seminários, clubes de leitura, escolas de formação, publicações, etc.
Como Marx sintetizou na Tese XI sobre Feuerbach: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes, a questão, porém, é transformá-lo”.(4)
Ivanir Corgosinho é sociólogo
NOTAS
(1) Ver: Mundo polarizado acabou, temos hoje duas visões de futuro incompatíveis entre si’, diz Marcos Nobre. Disponível em https://www.estadao.com.br/150-anos/republica-em-transformacao/mundo-polarizado-acabou-temos-hoje-duas-visoes-de-futuro-incompativeis-entre-si-diz-marcos-nobre
(2) MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.
(3) BOURDIEU, Pierre. Contrafogos II. Por um movimento social europeu, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2001.
(4) MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Marx Enges, obras escolhidas. Lisboa: Edições Avante, 1982.