Em abril do ano passado, no artigo “Marília, o PT e a renovação que tarda”, publicado neste blog, abordei um dilema estrutural do pacto federativo brasileiro: embora a Constituição de 1988 tenha reconhecido os municípios como entes federados autônomos, sua capacidade de intervenção nas chamadas macrodecisões ainda é pequena.
Naquela ocasião, o motivo do debate foi a nova lei do ICMS da Educação, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governo Zema, em prejuízo dos municípios mineiros mais populosos por desconsiderar adequadamente o número de alunos matriculados na distribuição dos recursos.
O episódio serviu para registrar uma lista de iniciativas federais e estaduais que afetaram negativamente as finanças das municipalidades, sem que estas fossem consultadas e pudessem influenciar as decisões. São exemplos a Lei Kandir, o pacotaço que reduziu o preço dos combustíveis em 2022 e a criação do Piso Nacional do Magistério e do Piso Nacional da Enfermagem, dentre outras.
Bem entendido, como escrevi à época, não se questiona o mérito de algumas decisões, que podem ser legítimas e justas. A questão é a unilateralidade das decisões e a necessidade de uma revisão do pacto federativo. Como disse a prefeita Marília Campos, em frase que citei no artigo: “Fazem política e não discutem a repercussão nas cidades. Precisamos de vozes municipalistas em nível federal e do Estado”.
Este problema volta a ser evidenciado pelo aumento das tarifas sobre produtos brasileiros, recentemente anunciado pelo governo norte-americano.
É fácil compreender que os municípios são postos avançados da economia globalizada. Decisões tomadas nos EUA, na Europa ou na Ásia afetam as economias municipais. Tarifas alfandegárias, acordos de livre comércio, sanções, subsídios externos e decisões da OMC podem desencadear consequências negativas como desemprego, queda de arrecadação e colapso produtivo em centenas de cidades no mundo. Quando as importações se tornam mais caras ou as exportações diminuem, a crise chega à porta da prefeitura, que precisa lidar com a retração da atividade econômica, falência de microempresários, queda na arrecadação de ISS e ICMS e aumento da demanda por serviços sociais. Em muitos casos, a situação é ainda mais dramática porque a estrutura econômica local é fortemente dependente de uma cadeia produtiva específica (como o café, o suco de laranja ou minérios), aumentando a vulnerabilidade e limitando as margens de manobra em momentos de crise.
Os dados revelam com clareza a extensão do problema. O tarifaço de Trump atinge cerca de 906 municípios do País, conforme levantamento realizado pelo jornal Estadão(1). As economias municipais mais afetadas estão no Sudeste e Sul do País. Dados do sistema ComexStat (MDIC) referentes a janeiro–dezembro de 2024 mostram que, em volume financeiro, Minas Gerais é o terceiro estado em exportações para os EUA. São Paulo. Rio de Janeiro e Minas Gerais representam cerca de 62,3% do total nacional destinado ao mercado norte-americano.
Em Minas Gerais, 376 municípios exportaram para os EUA em 2024, conforme informações do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC). As cidades mineiras que mais vendem para os Estados Unidos são Guaxupé, Varginha, Sete Lagoas, Araxá, Belo Horizonte, Contagem, Ouro Branco, Alfenas, Ituiutaba e Manhumirim (2). Juntas, representam mais da metade das vendas mineiras para os norte-americanos (US$ 1,45 bilhão em 2024).
No estado, o impacto é amplificado pelo perfil dos produtos embarcados. O café, por exemplo, que ficou fora da lista de itens isentos, responde por 33,1% das exportações de Minas Gerais para os Estados Unidos, sendo o principal produto exportado do estado para aquele país. Minas é, aliás, o estado brasileiro que mais exporta café para os EUA, enquanto o café representou 46,1% de todas as exportações do estado em 2024. Neste caso, Guaxupé e Varginha, por exemplo, que concentram boa parte da comercialização externa do grão, tendem a ser fortemente impactadas.
No caso de Contagem, a cidade se beneficia da diversificação de sua pauta de exportações para os EUA, como observou Keith Richard Braüer em artigo neste Blog(3). Estudo da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico estima que aproximadamente 70% a 80% do volume total exportado por Contagem não será impactado pela nova tarifa. Ainda assim, os Estados Unidos são parceiros comerciais estratégicos para a cidade, sendo o primeiro em exportações e o segundo de quem mais compramos no nosso comércio internacional total. Essa dinâmica evidencia a forte demanda norte-americana por produtos de Contagem, especialmente do setor industrial, mas também demonstra nossa dependência por insumos e bens de capital dos EUA.
Como se vê, embora o tarifaço tenha alguns setores específicos como alvo, seus efeitos atingem diretamente economias locais e arrecadação municipal — sem que os municípios tenham voz ativa na articulação da resposta. Esse deficit federativo e institucional exige reflexão. Em um país federativo como o Brasil, seria importante que os entes locais tivessem mais voz nas políticas de desenvolvimento, comércio e integração internacional. Se prefeitos e prefeitas têm que lidar com as consequências concretas — do desemprego à falência de pequenos produtores — também devem ter instrumentos e representatividade para participar da construção de soluções.
Ocorre que, no Brasil, a política comercial externa é competência da União, sem necessidade de consulta ou codecisão com estados, ou municípios. Essa assimetria limita a representação de interesses diversos e regionais na esfera federal. Essa é uma característica comum ao resto do mundo. Entretanto, em vários países (EUA, Alemanha, Canadá, Argentina e outros) essa concentração é mitigada pela criação de canais que permitem o envolvimento dos entes subnacionais (especialmente os estados) em decisões que afetem suas relações internacionais.
Nesse sentido, a Frente Nacional de Prefeitos (FTP) acerta ao propor uma Rede de Municípios Exportadores para promover estratégias de diversificação de produtos e mercados, além de buscar audiências com o governo federal. Essa articulação pode garantir acesso a programas federais e internacionais, apoio técnico, renegociação de dívidas e construção de políticas coordenadas. A entidade também iniciou diálogo com a United States Conference of Mayors (USCM), entidade homóloga nos Estados Unidos, para construir alternativas na tentativa de sensibilizar os governos centrais para manter os canais de negociação abertos, diminuindo os impactos na população das cidades. Também acerta na apresentação de uma pauta de reivindicações que incluiu (4):
• Compensação financeira por eventuais perdas na arrecadação municipal;
• Diversificação da matriz produtiva, com incentivo ao desenvolvimento de novas atividades econômicas e novos mercados;
• Ampliação dos prazos de crédito rural por parte dos bancos públicos;
• Plano de proteção dos empregos das atividades afetadas nos moldes do que foi feito durante a pandemia da Covid-19.
Embora positivas, essas ações são insuficientes, uma vez que o problema central — ou seja, a falta de voz ativa dos municípios no pacto federativo — requer medidas de mais longo prazo. Não se trata de exigir que prefeitos sentem à mesa da OMC ou assinem tratados internacionais, mas de estabelecer canais permanentes de escuta, cooperação e deliberação compartilhada entre os níveis federal, estadual e municipal, compreendendo que:
1. A centralização excessiva coloca o país em desvantagem competitiva e estratégica, especialmente diante de uma economia global cada vez mais complexa e interdependente;
2. Estados e municípios têm dificuldade para planejar respostas coordenadas, sejam elas fiscais, produtivas ou diplomáticas, devido à falta de acesso a informações estratégicas ou participação antecipada.
Assim, para avançar, seria fundamental:
• Criar fóruns permanentes de diálogo entre União, estados e municípios sobre comércio exterior. Uma sugestão seria a criação de um Conselho ou Câmara Nacional de Cooperação Internacional Municipal, com representantes da Frente Nacional de Prefeitos (FNP), da Confederação Nacional de Municípios (CNM) e de associações regionais, voltado à interlocução com os ministérios da Fazenda, Indústria e Relações Exteriores;
• Estabelecer mecanismos legais que permitam consulta prévia e participação formal dos entes subnacionais em negociações comerciais, como ocorre em países como Alemanha, Canadá, Austrália e outros;
• Estimular a criação de escritórios de relações internacionais nas prefeituras, em especial nas cidades médias e polos regionais (como ocorre com São Paulo e Curitiba), assegurando sua participação nos fóruns globais;
• Fortalecer a capacidade técnica e diplomática dos estados e municípios, por meio de órgãos dedicados e programas de capacitação, com apoio técnico e financeiro da União;
• Incluir representantes municipais em missões comerciais internacionais e missões diplomáticas brasileiras organizadas pelo governo federal, sobretudo quando estiverem em jogo cadeias produtivas com base no território;
• Diversificar mercados para reduzir a dependência dos EUA, incluindo negociações com a União Europeia e com o Leste Europeu.
Trata-se, enfim, de pensar um novo modelo de federalismo, mais próximo da ideia de federalismo cooperativo, multinível e internacionalista, no qual os municípios tenham canais efetivos de participação na formulação de políticas comerciais, industriais e internacionais. É preciso, enfim, reconhecer e valorizar seu papel de prefeitas e prefeitos como líderes políticos e defensores do território. Em contextos de crise como o atual, cabe a eles não apenas reagir tecnicamente, mas organizar o território, mobilizar a sociedade civil, articular-se com outras cidades e pressionar por soluções estruturais.
Sem essas mudanças, o Brasil continuará vulnerável a choques externos, com suas regiões produtoras e exportadoras reféns de decisões tomadas distante da realidade local. O fortalecimento do pacto federativo passa necessariamente por ampliar a inclusão dos entes subnacionais nas decisões que impactam diretamente suas vidas, economias e comunidades.
Ivanir Corgosinhoé sociologo.
Referências
(1) ESTADÃO. Quais são os municípios do Brasil mais afetados pelo tarifaço de Trump? Veja mapa e lista interativa. Estadão, 2025. Disponível em: https://www.estadao.com.br/economia/municipios-mais-afetadas-tarifaco-trump-veja-mapa-interativo. Acesso em: 9 ago. 2025.
(2) CORREIO DE MINAS. Os 10 municípios de Minas que mais podem ser afetados pelo tarifaço de Trump ao Brasil; Ouro Branco está entre eles. Correio de Minas, 11 jul. 2025. Disponível em: https://correiodeminas.com.br/2025/07/11/os-10-municipios-de-minas-que-mais-podem-ser-afetados-pelo-tarifaco-de-trump-ao-brasil-ouro-branco-esta-entre-eles. Acesso em: 9 ago. 2025.
(3) BRAÜER, Keith Richard. Protecionismo de Trump afetará Contagem? Zé Prata & Ivanir, [2025]. Disponível em: https://www.zeprataeivanir.com.br/7719-2/. Acesso em: 9 ago. 2025.
(4) FRENTE NACIONAL DE PREFEITOS. FNP levará pleitos dos municípios ao vice-presidente e ao BNDES. FNP, 2025. Disponível em: https://fnp.org.br/noticias/item/3577-fnp-levara-pleitos-dos-municipios-ao-vice-presidente-e-ao-bndes. Acesso em: 9 ago. 2025.