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Ivanir Corgosinho: O que quer o povo brasileiro? O programa de Lula e a vontade popular

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A ascensão da assim chamada “Nova Direita” no Brasil, culminando com a eleição de Jair Bolsonaro na eleição presidencial de 2018, assustou e deixou perplexos determinados setores intelectuais progressistas, especialmente alguns ligados ao campo ideológico da esquerda. Com bom humor, o articulista Enric González escreveu em dezembro daquele malsinado ano: “Milhares de acadêmicos ganharão a vida durante séculos estudando por que ocorreu o que começa a ocorrer agora” (EL PAÍS Brasil, 01/12/2018).

De fato, logo tivemos uma onda de pesquisas tendo em vista explicar o sucesso eleitoral da Nova Direita, sua natureza e fundamentos, e os eventuais vínculos do bolsonarismo com o fascismo e demais representações da direita mundial, também em fase de fortalecimento.

Neste esforço, foi retomada a linha de pesquisa sobre a formação social brasileira e suas repercussões no desenvolvimento da cultura política das classes populares. Dinâmicas sociais estabelecidas ainda no período colonial, como o escravismo, o latifúndio e as sesmarias foram revisitadas no afã de se reestabelecer e destacar suas relações tanto com a produção de nossas múltiplas assimetrias e desigualdades (regionais, econômicas, de gênero e de cor) quanto, também, com a histórica construção de uma cidadania de baixa intensidade e inegavelmente marcada pelo conservadorismo político e ideológico.

Assim, uma vez redescobertas suas origens primevas,  o familismo, o compadrio, patrimonialismo, a religiosidade, o machismo e o patriarcalismo, o racismo, dentre outros traços das tradições conservadoras e autoritárias da sociedade brasileira, foram situados como valores atuais; base para a consolidação de nossas instituições reguladoras e sistemas políticos e, finalmente, responsabilizados – quase que exclusivamente – pelo ascenso da extrema-direita, como se cada brasileiro tivesse, dentro de si, um “senhor de escravo” como ironizou o historiador Daniel Aarão Reis em artigo de 2019.

Por conclusão, malgrado tenhamos conseguido fundar uma ordem democrática, esta seria de qualidade precária e insuficiente para produzir e sustentar, a longo prazo, uma cidadania à altura das exigências da democracia representativa e liberal moderna. Dentre as pesquisas que mais se destacaram nesta linha de raciocínio está, certamente, o livro “Sobre o autoritarismo brasileiro”, da historiadora e antropóloga Lilia Katri Moritz Schwarcz, cuja leitura é altamente recomendável.

Embora tenha inegável fundamento, essa via explicativa não é suficiente para esclarecer o modo de pensar e as convicções do povo brasileiro.

Também é de Daniel Aarão Reis a seguinte consideração: “Apesar destas tradições, maiorias expressivas elegeram à presidência da república o sociólogo de centro-esquerda Fernando Henrique Cardoso (1994/2002), o líder operário, Luiz Inácio Lula da Silva (2002/2010) e Dilma Rousseff (2010/2016), ex-militante da luta contra a ditadura. Em outras palavras: as tradições autoritárias condicionam opções, mas não as determinam automaticamente.

Na mesma linha de raciocínio, não podemos ignorar o significado da Constituição Federal de 1988 que, após mais de 20 anos de ditadura militar, reestabeleceu a democracia no país. Considerada uma das mais avançadas do mundo na garantia de direitos à cidadania, a Constituição Cidadã resgata as garantias e liberdades individuais, rechaçadas a partir do golpe de 1964 e ssegura, em seu artigo 6º do Capítulo II, uma ampla gama prerrogativas da população, como o direito à educação, à saúde, ao trabalho, à moradia, ao lazer, à segurança, à previdência social e a proteção à maternidade e à infância.

Portanto, o que a ascensão da Nova Direta e a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro parecem expor, de fato, é o caráter concorrencial dos processos de construção das sociedades humanas, com seus respectivos agentes disputando tanto os conceitos, as crenças, os valores, as metas e a normas reguladoras a serem socialmente compartilhados, quanto o poder de controle sobre os resultados. No caso das democracias, este sine qua non passa a ser uma regra à medida que a democracia ou é um espaço de disputa permanente, ou não é democracia.

No caso do Brasil, o problema é que os agentes responsáveis pelo processo de desbravamento do território durante o período colonial, jamais tiveram como meta a formação de uma comunidade. A submissão da população indígena; a importação de mão de obra escrava; a exploração predatória dos recursos naturais com fins econômicos e, enfim, a concessão (pela Coroa) de inimagináveis quantidades de terras a particulares com o propósito de estimular a ampliação da ocupação via povoamento, foram políticas fortemente associadas à expectativa de ganhos rápidos, a baixo custo e ultraconcentrados quanto aos beneficiários – o que foi viabilizado pelo modo de produção escravista e pelo Estado autoritário que o sustentou.

Mais tarde, na independência e constituição da República, o liberalismo adotado pela aristocracia latifundiária vitoriosa no conflito com os portugueses, pouco ou nada contribuiu para a instauração dos direitos da cidadania. Pelo contrário, o liberalismo se opôs a uma distribuição mais equitativa da riqueza socialmente produzida e tratou a questão social como problema da polícia.

Por fim, nossas instituições governativas, cujo modelo foi importado da Europa, não eram empáticas à população e, rapidamente, incorporaram as instituições da vida real, como o coronelismo e os currais eleitorais, perpetuando um sistema de reciprocidades que reunia e combinava a força policial, votos, empregos, favores, direitos e garantias.

A atribuição de direitos e deveres da cidadania só veio a acontecer a partir da Era Vargas, cujo líder máximo jamais escondeu suas preferências por soluções impostas de cima para baixo.

A população, que rara vez foi chamada a participar desses processos, jamais deixou de lutar contra a dominação, a exploração econômica e, mais recentemente, contra a exclusão social. “A memória histórica”, escreve Glória Gohn, “registra lutas de índios, negros, brancos e mestiços pobres que viviam nos vilarejos, e brancos pertencentes às camadas médias influenciados pelas ideologias libertárias, contra a opressão dos colonizadores europeus”. Mais tarde, no início do século XX, com a substituição da mão-de-obra escrava pela assalariada e com a aceleração da urbanização do país, mais e mais questões foram incorporadas à pauta de reivindicações populares, acompanhada pela multiplicação de seus movimentos e formas de luta e de organização.

Essa história, repleta de embates e avanços sociais inconclusos, vem produzindo uma consciência politica complexa, ambivalente e formada por elementos aparentemente contraditórios. Por exemplo, nossa cultura desestimula a participação cidadã no sistema político – apesar do crescimento dos níveis de participação mais recentemente – mas incentiva o clientelismo e as expectativas em relação aos favores e benesses que se pode obter do Estado via a participação individualizada e discreta; trata-se se uma cultura fortemente estatista, mas que tende a incorporar o patrimônio coletivo ao âmbito da governança privada, naturalizando a corrupção e reproduzindo o patrimonialismo. Finalmente, é uma cultura que se reconhece discriminadora e racista, mas se opõe ao regime de cotas por entender que o “sucesso na vida” deve ser resultado do esforço e da resiliência pessoal.

Essa ambiguidade faz com que, desde uma perspectiva menos histórica e mais política, as escolhas da cidadania possam ser influenciadas por fatores de média e curta duração.

Por exemplo, parece elementar que o espaço alcançado pela Nova Direita só foi possível com a fratura do pacto político sacramentado com a Constituição de 1988. Frente aos desafios colocados ao Brasil pelas mudanças processadas em âmbito global, os partidos mais importantes na condução da Nova República (PT e PSDB) foram incapazes de evitar a desmoralização do sistema político em razão, especialmente no caso do PT, de seu distanciamento da sociedade e perda do nexo com os problemas que atormentavam as pessoas comuns. Esta é uma saga de 30 anos nos quais foram criadas as condições para o fortalecimento dos sentimentos de desconfiança da população em relação à política e aos políticos, e para a emergência de lideranças salvacionistas e outsiders, como diversas análises sobre o assunto têm reiteradamente afirmado.

Já no curto prazo, acredito que a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro não teria acontecido sem a ampla campanha das elites para mobilizar o antipetismo que vinha sendo generosamente alimentado deste o período anterior, com o impeachment de Dilma, prisão de Lula, etc.

É certo que o atentado de 6 de setembro de 2018, que permitiu que a Bolsonaro se ausentar dos debates e a intensa utilização das redes socais para disseminar falsas informações (fakenews), tanto quanto os eventuais erros de seus adversários, contribuíram para a vitória do atual presidente. O fato, entretanto, é que ele soube como se colocar como o campeão do antipetismo e, com isso, compor o arco de alianças mais capaz de conquistar a confiança das elites e o imaginário popular.

São esdruxulas, nesse sentido, tentativas como a do Instituto Datafolha de identificação da população nos recortes de esquerda ou direita.

Em primeiro lugar, não são conceitos facilmente definíveis. Por exemplo, o fato de uma pessoa ser contra o regime de cotas em razão de seu forte ethos do trabalho faz dela alguém de direita ou de esquerda?

Além disso, como vimos, conjunturas específicas podem estimular determinadas percepções em detrimento de outras. Sabemos, por exemplo, que a adesão aos valores democráticos tende a aumentar nos períodos de maior estabilidade e crescimento econômico, ao passo que nos períodos recessivos, os cidadãos tornam-se mais suscetíveis a concordarem com soluções impositivas que prometam uma melhoria de sua condição financeira.

Um levantamento realizado pela Fundação Perseu Abramo em 2021, visando a uma melhor compreensão dos valores e atitudes da população brasileira de baixa e média renda não polarizada (que não gosta nem desgosta do PT) concluiu que essas pessoas não atendem a um perfil homogêneo e que posicionamentos identificados ora como progressistas, ora como conservadores, podem coexistir no mesmo indivíduo. Da mesma forma, são diversas as possibilidades de combinação de posições progressistas e conservadoras por parte das pessoas, com diversos níveis de ênfases e gradações.

Uma breve mostra desta complexidade pode ser observada no quadro a seguir, com valores apurados pela Quaest & Genial, em 2021. Note-se que ideias progressistas e conservadoras são compartilhadas, em diferentes graus, pelo eleitorado dos dois principais candidatos à sucessão presidencial e, também, pelo publico alvo da malsinada terceira via.

Em linhas muito gerais, os principais valores formativos da cultua política brasileira, seriam os seguintes, de acordo com a pesquisa da FPA:

Família e religião — Fundamentais. São os núcleos de produção e reprodução dos valores morais e que garantem a formação do caráter. Portanto, estão na base das trajetórias individuais de vida e são o ambiente onde se aprende a perseverar para ser “alguém” na vida. A Igreja é o espaço que acolhe, norteia e ensina a nunca desistir.

Apesar de a referência ser à família tradicional heteronormativa, a pesquisa constatou uma boa receptividade à pauta LGBTQIA+ (união homoafeitva, direito de amar e de existir), normalmente entendida como uma questão de ordem individual sobre a qual não se deve interferir.

O ethos do trabalho – Ser “trabalhador” e “resiliente” tem um grande peso na definição da imagem de brasileiros e brasileiras sobre si mesmos. São valores que compõem a moralidade do povo e fornecem a força e a energia necessárias para seguir em frente numa sociedade que não apenas é muito injusta e desigual, como é conduzida por elites egoístas e corruptas. A força moral do valor trabalho leva ao otimismo, à confiança no futuro e à crença na distinção pelo mérito e pelo merecimento. Sua contrapartida é a rejeição ao banditismo (sempre acompanhada de ampla adesão ao punitivismo policial e judicial) e a desconfiança em relação às chamadas politicas afirmativas, particularmente o regime de cotas para negros (que reafirmaria o racismo);

A inclusão pelo consumo — O poder de compra (incluindo bens essenciais) também participa de modo intenso na constituição a identidade de classe e da percepção das crises econômicas. É pela quantidade e qualidade de produtos, bens e serviços aos quais se tem acesso (e não pelo tamanho de sua renda) que brasileiros e brasileiras avaliam a melhora ou a piora de suas condições de vida, seu nível de sua segurança financeira e sua situação frente ao futuro.

O papel do Estado no combate as desigualdades — O Estado mínimo defendido pelos liberais não passa pelo crivo da população. Para a maioria, cabe ao Estado prover pelo menos o mínimo necessário para a sustentação da vida, a começar pela garantis do acesso a públicas básicas como saúde, educação e segurança (que precisam ser melhoradas). A pandemia reforçou a valorização do papel do Estado e as das decisões políticas, especialmente na saúde, educação e no custo de vida.

Acesso e falta — A variável fundamental, capaz de dar visibilidade às diferenças entre pobres e ricos é o acesso. De forma semelhante ao que ocorre com a renda, não é a posse ou a propriedade que operam a distinção dos ricos dos pobres, e até da classe média. Popularmente, rico, “para além do óbvio critério financeiro monetário”, é quem pode fazer e acessar os bens e serviços que quiser (desde comer em restaurantes sem se preocupar com o valor da conta) até poder viajar e consumir produtos de alto valor, embora a ostentação não seja bem-vista. No contraponto, o pobre e a pobreza são definidos pela impossibilidade e pela falta de acesso. Pobre é quem não pode comprar, quem vive em situação muito precária e não tem acesso a uma alimentação de boa qualidade, à educação, saúde, a emprego, moradia, saneamento básico, água e até internet.

Defesa da democracia — Ainda que descrentes com os políticos, as pessoas acreditam no sistema eleitoral brasileiro e defendem a democracia como um valor, apesar das sabidas injustiças e desigualdades reinantes. Igualmente, as instituições públicas de Estado tendem a ser valorizadas, ao passo que os agentes púbicos são desacreditados e quase sempre associados a atos ilícitos e corrupção.

A análise desses esteios da moralidade cívica manifesta pela população não polarizada (que constitui a maioria do povo), permite concluir que se trata de um público altamente disputável por uma narrativa moderna, progressista e de esquerda. Por mais que contenha ambiguidades, a consciência política da maior parte de nossa população se apoia em conceitos e valores estranhos à visão de mundo professada pelo extremismo de direita, especialmente no que se refere à horizontalização das relações sociais via a democratização dos processos decisórios, a promoção da igualdade de direitos e a facilitação do acesso às oportunidades vitais para a construção de uma vida próspera e feliz – saúde, educação, segurança, trabalho e renda.

Apesar de desgostoso e desconfiado com a política e com os políticos, o eleitor ou eleitora com o perfil identificado no estudo da Fundação Perseu Abramo certamente ouvirá com atenção os enunciados das diretrizes programáticas apresentadas pelo PT para a chapa Lula/Alckmin e que se assentam no seguinte tripé:

a) Resgate do papel fundamental do Estado na promoção da igualdade e do desenvolvimento social;

b) Recolocar os pobres no orçamento com a priorização dos investimentos na Saúde, Educação, Segurança, Assistência Social e demais políticas públicas;

c) Pacificação da sociedade brasileira via um compromisso inarredável com o sistema democrático de governo.

Cada um desses eixos estruturantes tem desdobramentos que também contam com ampla aprovação popular, aferida em pesquisas quantitativas realizadas por diversos institutos.

Por exemplo, o resgate do papel fundamental do Estado na promoção da igualdade e do desenvolvimento social, tem o apoio de 85% dos brasileiros, conforme uma pesquisa promovida pela Oxfam Brasil. A defesa e a reorientação política das empresas estatais, medida imprescindível para que o Estado venha a cumprir com esse papel indutor, teria o apoio de 60% da população conforme um levantamento do Datafolha em 2019. O Conselho Federal de Medicina (CFM) registrou em 2018 (portanto, antes da pandemia) uma taxa de satisfação com o atendimento prestado pelo SUS na ordem de 77% dos brasileiros que procuraram pelo serviço. Já na pandemia, o SoU_Ciência em parceria com Idea Big Data identificou que a parcela da população que valoriza o SUS cresceu 53,1%. A Genial/Quaest registrou que 53% dos brasileiros são contrários à reforma trabalhista aprovada no governo Michel Temer. O Idea Big Data também constatou que, na contramão do que é proposto pelo governo Bolsonaro, 76% dos brasileiros querem ouvir a opinião, os conselhos e as orientações de especialistas qualificados, como cientistas e pesquisadores. Na mesma linha, o movimento Todos pela Educação observou que para 60% da população, a qualidade da educação no país é ruim ou péssima e 58% reprovam a atuação do governo Bolsonaro na área.

Finalmente, a reforma trabalhista aprovada no governo de Michel Temer é rejeitada por 53% dos brasileiros, de acordo com pesquisa feita pela Genial/Quaest; 43% dos brasileiros não aprovaram a mudança do Bolsa Família para o Auxílio Brasil em levantamento realizado pelo Datafolha; 68,1% dos brasileiros reprovam atuação do governo Bolsonaro na área do emprego, conforme dados do consórcio CNT/MDA; no início deste ano, 72% dos brasileiros não acreditavam que a posse de armas de fogo pudesse dar mais segurança às pessoas (Datafolha) e 62% dos brasileiros acreditam que a vida era muito melhor com Lula (Vox Populi).

Enfim, salta à vista que elementos da conjuntura de curto prazo favorecem amplamente a candidatura Lula à medida que representam objeções às políticas adotadas pelo governo Bolsonaro e um grande desejo por mudanças num quadro de polarização onde as proposições de “terceira via” não se viabilizaram. Como exemplo, temos os 75% dos brasileiros que atribuem ao governo federal a maior responsabilidade pela alta da inflação, em mais uma reprise do bordão “É a economia, estúpido!”, de James Carville na disputa entre Bill Clinton e George Bush.

Mas, mais que isso, temos a chance de fundar um novo projeto de nação.

As diretrizes programáticas apresentadas pelo PT para a chapa Lula/Alckmin estabelecem um diálogo fecundo com as tradições de nossa formação social e política e, portanto, com a “alma” do povo brasileiro que deseja um governo de compromissos com as pautas sociais exercitados num ambiente de democracia e retomada do desenvolvimento nacional.

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