Diretor de ‘Aquarius’ pôs a cidade mineira no mapa devido ao interesse pelos filmes da produtora Filmes de Plástico
Jornal O Tempo, 26/01/2024
Ao pegar a van no aeroporto de Confins com direção a Tiradentes, onde participaria de um debate dentro da programação da 27ª edição da Mostra de Cinema de Tiradentes, uma placa de estrada chamou a atenção do cineasta Kleber Mendonça Filho. Nela estava escrito “Contagem” e o realizador de “Aquarius” e “Bacurau” não pensou duas vezes antes de tirar uma foto.
“Hoje, Contagem é, para mim, Filmes de Plástico. Ela colocou Contagem no meu mapa. Claro que eu sabia que existia um lugar chamado Contagem na região metropolitana de Belo Horizonte, mas Contagem é hoje, para mim, filme”, destaca o Mendonça Filho, citando uma das produtoras de maior evidência no Brasil, que lançou filmes premiados como “Temporada” e “Marte Um”.
“Isso é muito bonito. Nós, brasileiros, crescemos vendo filmes importados. Nada contra eles, mas talvez contra essa quantidade industrial. A gente mitificou lugares onde nunca fomos. Nunca fui, por exemplo, àquela montanha em Dakota do Sul (Monte Rushmore), com os rostos dos presidentes americanos. Aquele lugar faz parte da minha imaginação, por causa de (Alfred) Hitchcock (em ‘Intriga Internacional’)”, observa.
A menção a Contagem se deve ao fato de ele ser questionado por fazer filmes em sua cidade natal, Recife. “Há um certo espanto, inclusive de dois jornalistas do Sudeste, que conseguiram, em 2023, fazer a pergunta: ‘Por que, de novo, Recife?’. É inacreditável. É natural, sou do Recife. Se você pegar uma longa linha de artistas de vários lugares do mundo, eles e elas filmaram e escreveram sobre os lugares que cresceram”.
Ele destaca que, por ser da capital pernambucana, carrega um ponto de vista do Brasil que difere de cidades do Sudeste e do Sul. “Isso tem a ver com a forma como olho a história e a cultura do país a partir de onde eu venho. Tem a ver com ancestralidade”, ressalta. “Bacurau” foi um dos poucos trabalhos em que filmou fora de Recife, escolhendo o sertão como cenário para um drama político de ficção-científica.
“Eu me senti seguro de escrever aquele filme, com Juliano (Dornelles), porque o sertão, apesar de ser da cidade, faz parte da minha vida. Você ouve histórias, lê sobre o sertão. E quando a gente foi para lá, o filme ‘explodiu’ da maneira linda possível, porque a gente fez uma chamada para o elenco. E descobrimos, no final, que eram pessoas eram rejeitadas em suas comunidades, por serem queer, trans ou descritas como estranhas”, revela.
O realizador também chama a atenção sobre o “apagamento” de produções nacionais. Ele cita como exemplo “Pixote, a Lei do Mais Fraco” (1980), de Hector Babenco, que valeu um Oscar para William Hurt. Com a disponibilidade recente no cardápio da Netflix, após ser restaurado pela fundação de Martin Scorsese, ele vem sendo tratado como “um filme iraniano desconhecido”.
“Como ele está na Netflix, está começando a ser visto por um público muito jovem, que fica estupefato com o filme, que é poderosíssimo. Eu não teria problema se um filme meu fosse esquecido, estando disponível, porque não mereceria ser lembrado. Mas se ele fosse esquecido por não fazer parte dos catálogos, isso seria muito triste. Isso é a história do cinema brasileiro”, analisa.
Mendonça Filho participou, na cidade histórica mineira, de um debate com o tema “Quais as Formas do Tempo no Cinema Contemporâneo Brasileiro?”, ao lado dos professores Lia Baia e Luiz Carlos Oliveira Jr. Ele comentou sobre o estranhamento dos espectadores estrangeiros em relação aos seus filmes, por justamente refletirem a desigualdade socioeconômica do país.
“Se eu vejo um filme francês, ele terá uma certa lógica da cultura e da sociedade francesa, mesmo que seja uma história de amor ou passado numa escola. Nos nossos filmes, uma lógica brasileira deve fazer parte, não por obrigação, mas naturalmente, da narrativa, do jeito de contar a história. E a lógica brasileira, infelizmente, reflete um país que é incrível, maravilhoso, mas que está longe de ser maravilhoso”, afirma.
Ele relata a experiência de ver “Que Horas Ela Volta?” (2015), de Anna Muylaert, num multiplex em Recife. “Era num cinema de classe média, média alta. Queria estar com uma câmera para gravar a reação da plateia, ao perceber que a heroína não era a dona de casa, mas sim a empregada. É muito interessante ver um filme que tem a lógica do Brasil. Um procedimento natural e viciado de nossa sociedade seria ter a patroa como heroína”, pondera.
O diretor destaca que hoje, quando as imagens são cada vez mais vendidas e reproduzidas, se não houver cuidado, o cinema vira uma série de procedimentos técnicos. “Você percebe isso muito claramente em séries e filmes comerciais que têm perseguição de carro, por exemplo. Os planos são muito previsíveis porque eles seguem procedimentos técnicos, que envolvem segurança ou algum desejo de emoção”.
Ele sublinha que esses procedimentos podem ser usados para uma cena de conversa, de estúdio ou de amor. “Eu vejo o procedimento tomando conta cada vez mais da narrativa. Isso também entra no cinema autoral. Mas, em geral, quando vejo um autor ou autora, eu digo: ‘aqui há artesanato’. Eu diria que, em nosso cinema, o André Novais (da Filmes de Plástico) é um desses artistas que fazem artesanato”, elogia.