Jorge Mario Bergoglio, filho de imigrantes italianos, nasceu em 17 de dezembro de 1936, no bairro de Flores na capital federal da Argentina.
Aos 12 anos, apaixonou-se pela vizinha, Amalia Damonte, a quem enviara uma carta de amor afirmando que, se não se casassem, tomaria os destinos do sacerdócio. Situação essa que fizeram os pais da garota, naturalmente, a afastarem do jovem pretendente.
Com 21 anos, ingressou no seminário da Companhia de Jesus. Um seguidor adepto e atento da ordem jesuíta. Em um surto, da gripe asiática de 1957, teve a remoção de uma parte do pulmão direito que o impediu de seguir numa missão ao Japão e, sobretudo, de se ter uma estabilidade orgânica pelo resto de sua vida.
Bergoglio lecionou Filosofia e Teologia na província de Santa Fé. Tornou-se arcebispo coadjutor de Buenos Aires em 1997. Em 1998, sucedou Antonio Quarracino como arcebispo da megalópole portenha. Transformou-se, ato contínuo, pelo ano de 2001, em cardeal por ordenação do papa João Paulo II.
Jorge Mario era discípulo de Juan Carlos Scannone, um mentor intelectual da Teologia do Povo- uma vertente da Teologia da Libertação de Gustavo Gutiérrez e Leonardo Boff-, uma nova concepção de doutrina, que veio influenciada pelo Concílio Vaticano II e do aggiornamento da Igreja Católica, e que se implantou e acentuou-se nos entremeios das hordas nas ditaduras latino-americanas.
A Teologia do Povo valoriza a fé e a cultura popular como atmosferas autênticas que permeiam a experiência profunda de Deus. Jorge Bergoglio atuou intensamente nas Villas Miserias e Curias Villas, projeto em favelas de Buenos Aires que tinham núcleos eclesiais criados para organizar a evangelização e um intenso trabalho pastoral.
O movimento curas villeros (padre das favelas) fora criado em 1969 ao tom do Movimento de Sacerdotes do Terceiro Mundo. Tal empreendimento historicamente restou-se afastado das estruturas hierárquicas eclesiásticas, o qual somente estreitou verdadeiramente os laços com o suporte do então arcebispo da capital federal.
Sublinha-se que, em um discurso histórico na simbólica Villa 31 (maior assentamento popular de Buenos Aires), Bergoglio incentivou os jovens a se comprometerem socialmente e também “fazer confusão” em sua diocese. Obviamente, a expressão se referia à participação da comunidade local com as igrejas, assim como o caminho
contrário num movimento circular em que as igrejas saem de si para ir até onde está o sofrimento. O sacerdote usava o termo “Igreja de saída” para, dessa forma, dissipar as abstrações de palácios burocráticos e buscar ações concretas nos caminhos pastorais.
Recordo-me bem do excelente filme “Elefante Branco”, de Pablo Trapero, em que discorre sobre os curas villeros nas missões paroquiais em locais involucrados de condições sociais gravíssimas e periferias absolutamente desprovidas de qualquer sinal de dignidade humana.
Jorge Bergoglio deslocou-se ao Vaticano, para o Conclave de 2013, após a renúncia de Bento XVI. Nunca aspirou pela posição máxima da hierarquia católica e nem cogitava alcançá-la. A fumaça branca escapou-se da chaminé da Capela Sistina e a Santa Sé enunciou habemus papam pelo novel pontifex maximus. Jorge Mario Bergoglio transformara-se em Papa Francisco.
Papa Francisco pela singela homenagem a São Francisco de Assis. Pela opção preferencial aos menos favorecidos. O então arcebispo de Buenos Aires não esquecera a conversa em que tivera com o cardeal brasileiro Dom Cláudio Hummes em que absorveu a mensagem para que não se esquecesse dos pobres.
Seu papado estabeleceu um pontificado marcado por fortes gestos de abertura, diálogo inter-religioso e diplomacia internacional.
Realizou um encontro histórico com o Patriarca Kirill de Moscou, líder da Igreja Ortodoxa Russa. Assinou em Abu Dhabi o Documento sobre a Fraternidade Humana com o grande imã de Al-Azhar, Ahmed el-Tayeb, promovendo a paz entre cristãos e muçulmanos. Incentivou a aproximação com o judaísmo, denunciando o antissemitismo e ressaltando as raízes comuns entre cristãos e judeus.
Na diplomacia, Francisco desempenhou um papel discreto mas fundamental na reaproximação entre Cuba e Estados Unidos. Acentuado pelos fluidos de suas convicções, atuou como mediador secreto entre Barack Obama e Raúl Castro, enviando cartas pessoais aos dois líderes e oferecendo o Vaticano como território neutro para negociações.
Pelo viés desportivo, poucos traços revelam tanto da personalidade de Jorge Mario Bergoglio quanto sua paixão pelo futebol e, em especial, pelo San Lorenzo de Almagro. Desde criança, o Papa acompanhou com fervor o “Ciclón”, um dos cinco grandes clubes de Buenos Aires, herdeiro de uma tradição popular ligada ao bairro de Boedo, zona de forte vida operária, artística e comunitária. Nesse sentido, a luta histórica do San Lorenzo para retornar a Boedo, seu bairro de origem, dialoga diretamente com a Teologia do Povo. Em diversas ocasiões, citou o San Lorenzo como uma paixão que carregava “desde o ventre da mãe”, e o clube, em reconhecimento, entregou-lhe uma camisa personalizada e uma carteirinha de sócio vitalício após sua eleição ao pontificado.
Sua carteirinha de sócio vitalício era a de número 88235. Se se trata de destino ou acaso, difícil saber, mas Papa Francisco partiu serenamente aos 88 anos, às 02:35. O esporte bretão, ópio do povo, definitivamente, se faz transcender.
O pontífice máximo, ao pedir que na sua lápide conste apenas a inscrição “Franciscus”, gravou em pedra aquilo que viveu em atos: a simplicidade, a opção pelo essencial e o apego ao povo. Seu legado é o de uma Igreja que caminha junto ao povo, fala a língua da vida concreta. Será difícil que o mundo se depare novamente um papa com essa combinação tão rara de coragem pastoral, ternura social e mística popular.
No fundo, como ele mesmo escreveu em um prefácio de um livro, a morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo novo. E Francisco já semeou, nas almas e na história, o início de um novo modo de ser da Igreja, e sua própria força e inspiração impedem um retrocesso para que possa continuar seguindo seus caminhos progressistas muito além de sua presença física.
Lucas Corrêa Fidelis é advogado e servidor público.