O Clube da Esquina, por esses dias, tornou-se um tanto mais órfão de seus pais fundadores, desfalcando-se, fisicamente, por assim dizer, de um de seus traços de maior genialidade.
Salomão Borges Filho, o Lô Borges, transcendeu ao misticismo do desconhecido. Juntou-se ao iluminado Fernando Brant, que fez sua despedida e tomou sua travessia transcendental há alguns anos. Mas que deixaram uma obra e um legado etéreo e perene um tanto quanto insofismável.
Nunca houve, de fato, um clube físico ou qualquer sede que personalizasse essa alcunha – que fez Lô Borges parafrasear a frase de um filme de John Ford: “Quando a lenda se torna muito forte, imprime-se a lenda”. Mas, sim, de uma turma que se juntava para fazer música entre as ruas Paraisópolis e Divinópolis, no bairro Santa Tereza, o que culminou num movimento em que se confluiu em um raro encontro de gênios musicais e criativos em que nos faz deparar, com um grande dilema, se tal reunião, fez-se, pelo acaso, ou por um misterioso, intrigante e desconhecido destino.
Milton Nascimento, o Bituca, o maior porta-voz do empreendimento, e na concepção de Márcio Borges, uma mente superior, trouxe seu amigo de infância, Wagner Tiso, de Três Pontas para a capital mineira, consolidando-se, assim, um grande compromisso de jovens músicos com a profundidade inerente da vida. E, com isso, uma formação, afortunada, se fez, principalmente com Milton, Lô e Beto Guedes, recluindo-se numa casa em Niterói, resultando-se, dessa maneira, num dos maiores álbuns universais de todos os tempos e tornando-se o nome do movimento, definitivamente, na materialização de sua marca registrada.
Sublinha-se que outros álbuns e canções sobrevieram e acabaram-se cristalizando no bojo do acervo da confluência, transformando-se numa entidade só. A genialidade e a qualidade das produções se notam por suas harmonias-melodias sofisticadas e complexas, com empréstimos modais, mesmo que inconscientes e intuitivos, ressoando sons nostálgicos e que, paradoxalmente, fazem rememorar a prosaicidade da vida cotidiana urbana, as belezas das montanhas e o bucolismo do sertão de Minas Gerais.
Um exemplo pela aferição dessas nuances é a canção: “Manuel, o audaz” do grandioso Toninho Horta e de Fernando Brant. Manuel é o apelido do jipe do conceituado guitarrista. Uma referência ao personagem Manuelzão de Grande Sertão: Veredas. A canção é algo absolutamente sublime, imbuída de múltiplas influências, com as características já afirmadas, além da mistura do jazz pelo belíssimo solo do virtuoso norte-americano, Pat Metheny.
Podemos citar também a verve musical pelo regionalismo de Beto Guedes trazida de Montes Claros. A título de curiosidade acerca de parentesco, seu pai, Godofredo Guedes, foi contemporâneo do poeta, compositor e seresteiro montes-clarense, João Chaves- compositor de “Amo-te muito”, gravada por Nara Leão, Wagner Tiso, Zé Teixeira e outros-, tio de meu avô materno, Paulo Chaves Corrêa.
Outros grandes contornos do clube é a atuação indelével dos irmãos Borges; além de Lô e Márcio, os toques e devaneios de Marilton e Yé. Tenho ótimas lembranças e uma grande satisfação de ter tido, como professora de Português e Literatura, uma das integrantes do clã, Sandra Borges, no extinto Colégio Pitágoras da Rua Timbiras. Lembro-me que fazia graça cantando Paisagem da Janela quando ela ia tomar nota por tarefas de casa realizadas e a docente sempre abria um grande sorriso.
Fato é que o Clube na Esquina não se restringiu ao quadrado da Paraisópolis e Divinópolis. Espraiou fronteiras. Transcendeu a musicalidade mineira por delineamentos universais e rompeu bordas com uma força absolutamente orgânica. Soltou vozes por caminhos de pedras sem deixar de enfrentar os percalços e sonhar. Entendeu que viajar é mais e que a contemplação pela travessia é sempre a mais importante nas sendas da vida.
Seja pelo dia ou em qualquer noite equatorial; pela rua, pela luz, pela estrada ou pelo pó.
Lucas Corrêa Fidelis é advogado e servidor público.