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Marcelo Neri e Nabil Bonduki: Programas sociais precisam de atualização

Para especialistas, Bolsa Família terá redesenho, MCMV será regional e Mais Médicos reduzirá estrangeiros

Valor Econômico,19/01/2023

A área de política social, que projetou Luiz Inácio Lula da Silva globalmente no início do século, deve sofrer mudanças nos próximos meses. Os programas de transferência de renda, habitação e saúde devem retomar características de mandatos anteriores do petista, mas passar por atualizações, afirmam especialistas.

Enquanto o Bolsa Família terá de sofrer modificações no desenho que mantém com o Auxílio Brasil, a retomada do Minha Casa Minha Vida prevê diversificação regional para habitação de baixa renda e o Mais Médicos deve contar com menos profissionais estrangeiros do que quando foi criado.

O Auxílio Brasil, principal programa de transferência de renda hoje, deve voltar a se chamar Bolsa Família e sofrerá ajustes. O ministro do Desenvolvimento Social, Família e Combate à Fome, Wellington Dias, afirmou que a ideia é fazer um pente-fino para direcionar o benefício somente às famílias que realmente dependem dele.

Na segunda-feira, Dias afirmou que o recadastramento do Bolsa Família começará com um grupo prioritário de 2,5 milhões de famílias que, segundo ele, têm mais indícios de fraudes e irregularidades. “Vamos começar levando em conta cerca de 10 milhões que têm indício ou desatualização ou de alguma irregularidade. Porém, a partir dessa base, outro foco que leva em conta aproximadamente 2,5 milhões de famílias em que esse indicador [de irregularidade] é mais forte”, disse.

Talvez o novo governo tenha de fazer mais, afirma Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV Social). “Lula terá de repetir um pouco o que fez em 2003, quando pegou um começo de governo com o Fome Zero e, nove meses depois, mudou a estratégia para o Bolsa Família, que congregava programas anteriores como o Bolsa Escola. Teve uma curva de aprendizagem rápida para colocar em prática um programa que durou 20 anos”, diz. “Não seria um Bolsa Família 2.0, porque o Auxílio Brasil é um Bolsa Família 0.5, um retrocesso”, comenta Neri.

Apesar do aumento do benefício de R$ 400 para R$ 600, Neri afirma, o Auxílio Brasil tem problemas de desenho, como ser destinado às famílias independentemente do número de pessoas, o que é um incentivo ao crescimento das famílias unipessoais.

“Lula tem de reformular o programa da mesma forma que conseguiu fazer o Fome Zero virar o Bolsa Família. Se mantiver o desenho do programa como está, ficará enxugando gelo”, diz Neri. “Pelos nossos cálculos, com esse tipo de desenho são desperdiçados 55% dos recursos. Com os mesmos recursos, seria possível reduzir a pobreza mais de duas vezes do qudo que com o desenho atual. É preciso, portanto, voltar ao Bolsa Família tradicional e fazer mais.”Na saúde, o Mais Médicos, que no governo Bolsonaro passou a se chamar Médicos pelo Brasil, deve ter menos profissionais do exterior do que há uma década, segundo Felipe Proenço, que foi coordenador nacional do Mais Médicos e hoje pesquisa e leciona na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

Em um primeiro momento, prevê, o programa deve voltar a se chamar Mais Médicos, como criado em 2013. Proenço observa, contudo, que os programas são muito similares e hoje a maior parte dos profissionais atuando na atenção básica advém do programa. Ele cita dados do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), segundo os quais 9.600 desses profissionais vêm do Mais Médicos, que foi lançado em 2013. Outros 3.800 são do Médicos pelo Brasil, criado em 2019.

O especialista afirma que desde 2018, quando acabou o Mais Médicos, há cerca de 3 mil vagas em áreas mais vulneráveis e de difícil acesso, como territórios indígenas, que não foram preenchidas. A maioria desses postos era antes ocupada por médicos cubanos.

Dentre as razões que explicam a falta de profissionais nesses locais, estão o fim do convênio com a Organização PanAmericana de Saúde (Opas), pelo qual os cubanos eram contratados, e a supressão de outras estratégias, como abertura de vagas do curso de medicina e de residência médica em até 100 quilômetros de locais vulneráveis.

“Então [o número de médicos] voltou a se concentrar [ao redor das cidades grandes], e [a ideia inicial] foi perdendo fôlego, porque são estratégias que têm de ser combinadas”, diz.

Apesar dos ajustes para aumentar a adesão de médicos recém-formados em cidades menores, contudo, o novo Mais Médicos não deve ter tantos estrangeiros como no início, prevê Proenço. “Não vejo neste momento, quase dez anos depois da criação do Mais Médicos, necessidade de médicos estrangeiros como havia em 2013”, diz. Para ele, a volta do governo Lula não necessariamente significa o retorno dos 2.500 médicos cubanos que continuaram no Brasil após o fim do Mais Médicos.

“O Mais Médicos prevê etapas. Primeiro abrem-se vagas para médicos brasileiros, depois para brasileiros formados no exterior e depois para estrangeiros. Hoje há um cenário de mais médicos formados no Brasil do que há nove anos”, continua.

Na área de habitação também haverá retorno ao programa que vigorou nos governos petistas, com a substituição do Casa Verde e Amarela, criado em 2020, pelo Minha Casa Minha Vida, de 2009.

Segundo Nabil Bonduki, urbanista da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, que fez parte da equipe de transição para habitação, haverá novas modalidades, foco em transversalidade para englobar saúde, educação e emprego, e expansão para outras regiões.

Um dos principais eixos é retomar a faixa 1 do programa – para famílias com renda mensal de até R$ 1.800 -, que deixou de existir, diz Bonduki. A expectativa é que a faixa 1 virá com recursos do Orçamento, enquanto as faixas 1,5, 2 e 3 terão acesso a taxa de juros diferenciadas, de acordo com a região. No Nordeste, por exemplo, essa taxa tende a ser mais baixa.

“Além disso, a ideia é buscar incluir famílias que têm renda, mas não conseguem comprová-la e, por isso, têm dificuldade de acesso a financiamento”, diz.

Outra mudança que pode ocorrer é o empreendimento habitacional não vir sempre pronto, como no MCMV anterior.

Nesses casos pode haver outras modalidades, diz, como retrofits (técnica de revitalização de construções antigas para adaptá-las às necessidades atuais) mais próximos do centro, a fim de ter maior proximidade com o trabalho.

“Uma crítica muitas vezes feita ao MCMV era que os empreendimentos na faixa 1 eram muito periféricos”, lembra.
Outras opções, afirma, poderiam ser melhorias habitacionais com assistência técnica, que em geral demandam menos recursos do que a construção de uma nova unidade do MCMV. “Com um terço dos recursos pode-se transformar um barraco em uma casa digna. As pessoas podem continuar onde estão, mas com condições adequadas”, diz.

Bonduki acrescenta ainda a possibilidade de uma linha de autogestão no MCMV, em vez de construções feita por empreiteiras, e a preocupação em haver diversidade regional, para lugares como Amazônia e semi-árido.

“Como as construtoras atuaram, acabaram gerando uniformidade. Fazer coisas mais uniformes pode garantir maior agilidade, já que um projeto uniforme é aprovado mais rapidamente do que o diferenciado. Mas a intenção é que tenha mais qualidade e mais diversidade”, prevê o urbanista.

Nesse sentido, o novo MCMV deve se voltar mais para periferias, com uma preocupação para além da habitação, levando em conta urbanização, regularização fundiária, qualificação, saneamento, drenagem, eliminação de riscos.

“A ideia é reduzir a desigualdade urbana. Ou seja, qualificar esses bairros para que deixem de ser vulneráveis e possam ter condições de vida mais adequadas”, afirma. “É um programa que pode integrar educação, saúde, cultura, urbanismo, habitação, e fazer essa integração de maneira transversal.”

A Proposta de Emenda Constitucional (PEC) da Transição, diz Bonduki, contempla recursos necessários para 2023. Mas ainda é necessário definir de onde virá a verba para viabilizar o novo MCMV nos anos seguintes.

Nabil Bonduki é arquiteto e urbanista. Professor titular de Planejamento Urbano da Universidade de São Paulo e Professor Visitante na Universidade da Califórnia, em Berkeley.

Marcelo Neri é economista. Foi presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de setembro de 2012 até maio de 2014 e ministro-chefe da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de 22 de março de 2013 a 5 de fevereiro de 2015.

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