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Marco Antônio: Transporte público coletivo — alternativas para financiamento do sistema

Uma das questões que mais impactam a mobilidade urbana, sobretudo nas médias e grandes cidades no mundo inteiro, é o grau de eficiência do transporte público coletivo de passageiros, seja por modais rodoviários, como é o caso dos ônibus, seja por modais sobre trilhos, como é o caso dos bondes, trens, VLT ou metrôs. É imprescindível entender essa questão pois ela é um balizador dos mais relevantes para sabermos o quanto a mobilidade urbana em determinada cidade é boa ou ruim.

E quando se fala em transporte público coletivo destaca-se, obviamente, a questão do custo do sistema e a forma de financiamento; em outras palavras “quem paga a conta do funcionamento e operação do sistema?” Como já abordamos em outro momento aqui mesmo neste Blog, há que se entender que o custo do transporte público coletivo de passageiros tem que ser bancado pelo conjunto da sociedade, uma vez que todos, direta ou indiretamente são usuários do sistema de transporte coletivo ou são impactados por ele no seu dia a dia.

Para facilitar a nossa reflexão vamos focar neste artigo na questão do transporte coletivo por ônibus, que ainda hoje no Brasil é o sistema que transporta a maior quantidade de pessoas, sendo inclusive um grande alimentador dos sistemas de maior capacidade, como é o caso dos metrôs, por exemplo.

Antes porém, de avançarmos no tema, é importante destacar que a mobilidade urbana não passa somente pela questão de se ter bons ônibus, itinerários racionais e tarifas acessíveis (ou até mesmo gratuidade total), pois há uma série de outros fatores que influenciam no resultado final dos deslocamentos. Vamos citar, apenas para ilustrar a questão, dois pontos importantes: a infraestrutura viária e a segurança e fluidez do trânsito. É preciso ter vias bem pavimentadas e bem sinalizadas; acessibilidade para os pedestres poderem caminhar e chegar aos pontos de ônibus; tratamento dos passeios com piso tátil para as pessoas com deficiência visual; rampas de acessibilidade nas travessias de pedestres; sinais sonoros nos semáforos e outras medidas para possibilitar a inclusão de todos e todas. Portanto, a discussão sobre o financiamento do sistema, não pode ficar restrita apenas às questões da qualidade dos ônibus e dos investimentos para aquisição e renovação da frota, bem como ficar focada apenas nos custos com combustível, peças, lubrificantes, material rodante, seguros e remuneração dos operadores, uma vez que o conjunto de ações, amplas e bem distribuídas e organizadas, é que poderá efetivamente propiciar a efetiva melhoria da mobilidade urbana.

Importante ainda lembrar que o sistema de transporte público de passageiros por ônibus vem acumulando problemas e dificuldades desde 2003, portanto há mais de 20 anos, com queda acentuada no número de passageiros transportados e os aumentos excessivos dos custos de operação, tendo como consequência uma tarifa mais cara e/ou a redução na quantidade e qualidade dos serviços prestados pelas empresas operadoras do sistema. Esta é uma situação que se reproduz, de maneira geral, em todo o Brasil, cenário que foi bastante agravado com a pandemia do COVID 19 nos anos de 2020 e 2021, cujos reflexos negativos ainda perduram até hoje, clamando por adequações e novas ideias para resolver as questões.

Neste contexto todo surge a ideia da adoção da chamada “tarifa zero”, que vem sendo defendida por muitos como a grande solução para o problema do transporte público coletivo por ônibus. Será que os Prefeitos e Prefeitas de todo o Brasil não gostariam de adotar a “tarifa zero” em suas cidades? Claro que sim, pois é uma medida altamente positiva e que agrada a população. Contudo, não é possível fazer isso comprometendo outros serviços básicos para a população, como por exemplo saúde e educação, ou inviabilizando obras importantes para a cidade em infraestrutura viária e de saneamento, dentre outras. Se ninguém vai pagar passagem de ônibus, como o sistema poderá existir? Quem vai bancar os custos de operação e manutenção do sistema?

Estudos recentes divulgados pela Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos – NTU, dados de abril de 2024, mostram que no Brasil há 124 cidades que adotaram a tarifa zero. Esse dado é importante ser destacado e cabe uma observação inicial que na verdade são apenas 107 cidades que adotaram integralmente a tarifa zero.

Explica-se a diferença (124 para 107) pois a NTU considera na sua listagem, cidades como Belo Horizonte, que têm tarifa zero apenas nas linhas de vilas e favelas e portanto a grande maioria da população paga passagem; cidades que têm gratuidade ampla apenas nos domingos e feriados, como Nova Lima/MG e Palmas/TO, sendo que nos dias úteis o usuário paga tarifa; cidades que têm gratuidade muito específica, como é o caso de Florianópolis/SC que concede gratuidade no sistema apenas no último domingo de cada mês; dentre outras particularidades.

De qualquer forma, considerando um país cuja população é de cerca de 203 milhões de habitantes, temos apenas cerca de 5 milhões de habitantes que residem em cidades que adotaram a tarifa zero no transporte coletivo por ônibus, ou seja, menos de 3% da população total. Importante destacar ainda que das cidades que aderiram à tarifa zero cerca de 90% são cidades com população menor que 100 mil habitantes e que puderam dispor de receitas dos cofres públicos sem afetar tanto o atendimento de outras demandas da população, como saúde, educação e segurança; e que várias delas inclusive contam com recursos advindos de royalties da mineração e do petróleo, o que facilitou a decisão em oferecer “tarifa zero” no transporte público coletivo de passageiros. Os 10% restantes das cidades, somente 2 têm população acima de 200 mil habitantes: Caucaia/CE, com 355.679 hab, e Luziânia/GO, com 209.129 hab.

Obviamente que em todas essas 107 cidades a demanda de passageiros aumentou significativamente, uma vez que toda a população pode usar os ônibus sem pagar; então quem não podia pagar para andar de ônibus ou quem andava somente quando dispunha do vale transporte passou a usar os ônibus rotineiramente e a demanda com isso aumentou demais, já causando desequilíbrio entre demanda e oferta, o que poderá causar novos problemas para os gestores e os usuários.

Façamos uma pequena pausa na leitura e vamos tentar responder a uma indagação que muitas pessoas se fazem Brasil afora: “Por que razão as grandes cidades não adotam a tarifa zero no transporte coletivo por ônibus?”
Muitos vão tentar responder com argumentos simples e certamente devem pensar que “falta vontade política” dos Prefeitos e Prefeitas das grandes cidades para adotar a tarifa zero. Isso será verdade? Algum político deixaria de adotar medida tão popular se pudesse arcar com os custos dessa tarifa zero sem prejudicar as demais demandas da cidade? Parece-nos óbvio que não é essa a resposta. A questão não pode ser respondida apenas sob a ótica da vontade política, pois o que falta aos municípios é capacidade financeira para arcar com essas despesas

Para ilustrar o que estamos dizendo, vamos comentar o caso de São Paulo/SP e Belo Horizonte/MG. Em São Paulo a Prefeitura vai investir em 2024 cerca de 5,3 bilhões de reais para subsidiar o sistema de ônibus; em Belo Horizonte o valor para esse ano está estimado em valores acima dos 700 milhões de reais. E vejam bem, esses valores não são para tarifa zero e sim recursos para manter o preço da passagem congelado nesse ano de 2024. Portanto, essas duas grandes capitais não têm como dar tarifa zero integralmente no transporte por ônibus, pois os valores seriam estratosféricos e simplesmente impossível de serem bancados com recursos dos cofres municipais.

Vamos agora ilustrar o nosso raciocínio com uma cidade de grande porte, porém com população menor que as duas capitais citadas. Tomemos a cidade de Contagem/MG, com população de 621.863 hab como exemplo, cuja particularidade é bastante complexa em termos do sistema de transporte coletivo por ônibus, pois somente cerca de 40% dos usuários de ônibus utilizam as linhas gerenciadas pela Prefeitura de Contagem, através da TransCon, sendo que os demais 60% utilizam linhas metropolitanas, sob gestão do Governo de Minas Gerais e sobre as quais a Prefeitura não tem qualquer poder de regulamentação ou gerenciamento.

Pois bem, apenas para as linhas gerenciadas pela Prefeitura de Contagem, estima-se que o custo anual ficaria em torno de quase 200 milhões de reais para que se pudesse conceder a tarifa zero, recurso que o município não pode dispor, sob pena de comprometer outras demandas da cidade. A Prefeitura tem então investido em criar condições para melhorar a mobilidade urbana e com isso possibilitar a redução dos custos de manutenção do sistema por parte das empresas. Tem investido em um amplo programa de melhoria da infraestrutura viária, o “Asfalto Novo”, que tem priorizado a recuperação total do pavimento dos principais corredores de tráfego da cidade e das vias que são itinerários de ônibus. Tem buscado soluções para melhorar o quadro de horários dos ônibus em debates abertos com a participação popular e buscando junto aos operadores uma melhor adequação entre demanda e oferta. E também já dá algum subsídio, pagando pelo transporte das pessoas com deficiência e isentando de pagamento o ISS municipal por parte das empresas operadores. Mais ainda, tem avançado na implementação do SIM – Sistema Integrado de Mobilidade, que deve entrar em operação no final de 2025, o que deve proporcionar a redução do custo das viagens para os usuários, pois haverá integração em terminais e estações de transferência, possibilitando ao usuário pagar apenas uma passagem para fazer deslocamentos que hoje impõe o pagamento de duas ou mais passagens.

Como se vê, nas três cidades citadas aqui para exemplificar a questão, São Paulo/SP, Belo Horizonte/MG e Contagem/MG, parece-nos claro que não falta vontade política para adotar a tarifa zero, faltam é recursos. E essas três cidades, cada uma delas com suas peculiaridades próprias, tem investido no sistema de transporte público coletivo por ônibus, mas não conseguem adotar a tarifa zero de forma integral e universal, pois de fato não dispõem de recursos para tal.

A pergunta agora é….. “Quais as alternativas para financiamento do sistema de transporte público coletivo por ônibus?”

Evidentemente que essa questão não pode ser respondida de forma simples. O conceito geral da “tarifa zero” é o de não pagar para andar de ônibus, mas, implicitamente, ele pressupõe que o sistema de transporte seja de qualidade, acessível e sustentável. Portanto, há que se pensar em soluções que contemple tudo isso e que tenha viabilidade técnica, legal e operacional.

Vamos elencar algumas dessas possíveis alternativas que têm sido objeto de conversa, estudos e discussões em torno da viabilidade ou não da adoção da tarifa zero no transporte coletivo por ônibus, como pontos para a reflexão de você que está lendo esse artigo e se interessa pelo tema.

• reunir todo o gasto com vale transporte que as empresas dão aos empregados e repassar diretamente para o sistema, beneficiando a todos os usuários e não somente os que têm direito ao vale transporte;

• taxar o uso das vias públicas pelos automóveis particulares e aplicar os recursos no transporte coletivo, algo semelhante a um “pedágio urbano”; medida que poderia ser adotada em determinadas regiões das cidades;

• criar uma taxa extra anual ser paga pelos proprietários de automóveis e motos no licenciamento dos veículos e repassar os recursos para o transporte público coletivo de passageiros;

• destinar os recursos da CIDE integralmente para o sistema de transporte público coletivo de passageiros;

• isentar de impostos os principais itens que integram os custos de operação do sistema, como os combustíveis, lubrificantes, veículos, pneus e peças;

• estudar uma forma de desonerar a folha de pagamento dos trabalhadores do sistema de transporte público coletivo de passageiros;

• repensar a questão da ocupação urbana de forma a criar centralidades que possam viabilizar a vida das pessoas com deslocamentos de menor percurso e, portanto, em tese, de menor custo; e

• implantar e/ou aprimorar os mecanismos de integração tarifária dentro do próprio sistema ônibus e também com outros modais como o transporte sobre trilhos e os modos ativos.

Essas medidas, isoladas ou em conjunto, podem e devem ser estudadas com mais profundidade e podem sim ser um ponto de partida importante para o barateamento do custo do transporte público coletivo de passageiros. Certamente devem existir outras tantas possibilidades e não é nossa pretensão aqui esgotar o assunto, mas sim levantar possibilidades para contribuir com o debate e a busca de soluções.

Embora não seja de fácil solução, como mencionamos em outro artigo aqui mesmo neste Blog, a boa notícia é de que o assunto do financiamento do transporte público coletivo de passageiros, sob a forma da “tarifa zero” vem ganhando cada vez mais espaço na mídia, no meio político e na sociedade de maneira geral. A preocupação em resolver a situação está nas pautas prioritárias dos gestores públicos, sobretudo dos Prefeitos e Prefeitas Brasil afora e já começa a produzir resultados.

Recentemente, no início de abril/2024, foi aprovado na Câmara dos Deputados o PLP 233/23 que cria o SPVAT – Seguro de Proteção às Vítimas de Acidentes de Trânsito, sendo que do total arrecadado está previsto o repasse aos municípios e estados, onde houver serviço municipal ou metropolitano de transporte público coletivo, do montante entre 35% até 40% do valor arrecadado do prêmio do SPVAT por meio do Governo Federal. Ainda é preciso entender como de fato isso vai acontecer, mas já é uma boa notícia saber que nossos Deputados começam a ter um olhar mais atento à essas questões do financiamento do transporte público coletivo de passageiros.

O desafio para se buscar soluções para o financiamento do transporte público de passageiros está cada vez mais evidente. Há debates a respeito em todo o Brasil. Os Prefeitos e Prefeitas estão se mobilizando para encontrar as soluções. O que você pensa sobre tudo isso? Você, caro leitor e leitora, é favorável à “tarifa zero”? Considera a “tarifa zero” a solução para os problemas de mobilidade urbana”? Convido novamente todos e todas a refletirem sobre o tema e se engajarem no debate. A hora é essa!

Marco Antônio Silveira é Engenheiro Civil e especialista em engenharia de tráfego e transportes

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