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Maria Cristina Fernandes: pai da LRF vê novo regime fiscal com mais chance de sucesso do que o teto de gastos

O regime fiscal a ser proposto ao Congresso em março já parte de uma vantagem sobre o teto de gastos: será proposto pelo mesmo governo que se disporá a cumpri-lo

VALOR ECONÔMICO, 20/02/2023

O regime fiscal a ser proposto ao Congresso em março já parte de uma vantagem sobre o teto de gastos. Será proposto pelo mesmo governo que se disporá a cumpri-lo, o que marca uma diferença fundamental em relação ao modelo que o antecedeu. Este regime foi proposto pelo governo Michel Temer, num ano em que houve uma elevação de gastos, para que o governo seguinte cumprisse.

“O teto implantou a austeridade para o sucessor, mas foi sucessivamente descumprido, por exemplo, com a mudança na lei dos precatórios e a PEC Kamikase (que permitiu a criação do auxílio emergencial)”, diz José Roberto Afonso, numa conversa por telefone com o Valor. O economista vê o teto de gastos e o “orçamento secreto” como parte do mesmo fio. “Não foi exatamente um teto, mas um controle de porteira. O Congresso passou a arbitrar o que passaria por lá, inclusive o orçamento secreto”.

As ideias de José Roberto Afonso saem aos borbotões. Um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal, o economista mora há quatro anos em Lisboa. Dá aulas no Instituto de Direito Público, é pesquisador da Universidade de Lisboa e vice-presidente do Fórum de Integração Brasil Europa, que, a partir da quarta-feira de cinzas, promove um seminário sobre o futuro da governança fiscal.

À distância, Afonso enxerga uma floresta em recomposição onde o debate local só vê uma dívida pública devastada. Na aposta da tese de que a crise é parteira de boas soluções, o economista crê num momento tão propício para a rediscussão do regime fiscal do país quanto o foi aquele que se seguiu à crise cambial de 1998 para a gestação da Lei de Responsabilidade Fiscal, aprovada dois anos depois.

Naquele momento, os investidores estrangeiros duvidavam se o Brasil, que fecharia um acordo com o FMI em dezembro de 1998, honraria sua dívida externa. O otimismo de Afonso hoje decorre do fato de que o Brasil trocou uma pressão externa por aquela dos credores da dívida interna que, diz, está dissociada de sua trajetória descendente. Mas o economista tem outros motivos para acreditar na potencialidade da conjuntura.

Um deles, pasme, é o papel que o Congresso pode vir a exercer. Do estabelecimento do teto de gastos, em 2016, para cá o Congresso avançou no Orçamento e só recuou agora face à pressão do Executivo, mas o fato não lhe mitiga o otimismo de José Roberto Afonso. Garantida a transparência da execução orçamentária.

Foi o Congresso que incorporou, na reforma administrativa, uma previsão de regulamentação do artigo 163 da Constituição que resultou na Lei de Responsabilidade Fiscal. Acabou aprovando uma versão mais austera do que aquela que lá chegou. Não tenho dúvida que o Congresso, que estabeleceu a necessidade de uma nova regra fiscal na PEC da Transição, também pode melhorar o que vai receber do governo”, diz.

Ele define a proposta de regime fiscal que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, vai encaminhar ao Congresso em março como um complemento da LRF, que 23 anos depois, só vale para Estados e municípios. A União impôs um controle ao qual não se submete, mas os entes federativos acabaram por fazer uma limonada de seu azedume. “Os Estados reduziram o endividamento, e os municípios, se não houver recessão, vão terminar o ano com mais dinheiro em caixa do que dívida.”

A União, diz, precisa de uma mudança na cultura fiscal à semelhança daquela que os gestores locais foram submetidos com a LRF. O novo regime fiscal deve focar nesta mudança, e não na resposta ao que chama de “meia dúzia de estressados” do mercado. “O stress é dos bancários, não dos banqueiros”, diz, ao diferenciar os grandes gestores de operadores dos economistas que produzem os relatórios que pautam as expectativas do mercado.

Afonso aponta para a Americanas para explicar o desequilíbrio das expectativas. Diz que Arno Augustin, ex-secretário do Tesouro no governo Dilma Rousseff, um dos mentores da operação que ficaria conhecida como “pedalada fiscal” e custou o mandato da ex-presidente, é um “estagiário” frente aos operadores da Americanas, que inventaram um lucro para distribuir entre os sócios e esconderam a dívida.

“O que se passa lá não tem a menor condição de acontecer no setor público. Todas as informações da dívida e dos gastos públicos estão na internet. Agora, em meados de fevereiro, já sabemos tudo o que se passou nas finanças públicas da União dos Estados e de uns 3,2 mil municípios em 2022”, diz.

Esta transparência, na opinião de Afonso, tem que se estender para as obras públicas com a incorporação da população no controle de sua execução por meio de programas de georreferenciamento a exemplo daquele que é usado, por exemplo, no Exército.

Se a transparência orçamentária avança, Afonso já não diz o mesmo do debate sobre as políticas monetária, de crédito, industrial, de serviços e inovação. Vê muito mais discussão fiscal na imprensa brasileira do que em publicações especializadas como o “Financial Times” ou “The Economist”, e a julga desconectada do debate sobre juro e câmbio – “Estamos exagerando a parte e esquecendo o todo”.

Nesta quarta-feira começa o seminário que ajudou a organizar, em Lisboa, no Fórum de Integração Brasil Europa, sobre o futuro da governança fiscal. Da exposição de Vitor Gaspar, diretor do Departamento de Assuntos Orçamentários do FMI, que terá moderação do economista André Lara Resende, e o presidente do Tribunal de Contas da União, Bruno Dantas, e o diretor do Banco Safra, Joaquim Levy, como debatedores, esperam-se contribuições para a atual discussão do novo regime fiscal no país. Em artigo no ano passado, Gaspar argumentou contra a ameaça de uma política de juros altos para o esforço no endereçamento de temas como a crise climática.

Afonso vê na abertura de diálogo do governo federal com Estados e municípios o dado mais alvissareiro da discussão sobre o novo regime fiscal. Vê tanto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva quanto o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, perseguirem a tentativa de um concerto federativo que esboçaram na passagem de ambos por Lisboa, ainda na transição. De lá pra cá, houve duas reuniões de Lula com governadores e outras tantas com os presidentes das Casas do Congresso.

Naquele momento, quando Afonso e o ministro do STF Gilmar Mendes almoçaram com Lula e Haddad, o atual ministro ainda não havia sido anunciado na Fazenda, mas Lula já tinha batido o martelo em sua escolha na parada anterior da viagem, à COP27, em Sharm el-Sheikh, no Egito. Afonso vê na abertura da Fazenda tanto ao diálogo federativo quanto com instâncias como o FMI, da qual o Brasil não mais depende, um acerto.

Vitor Gaspar e Olivier Blanchard, seu antecessor no cargo no FMI e economista da predileção de André Lara Resende, farão um seminário no segundo semestre do qual espera que os modelos de um, mais afeito a metas, e o do outro, a padrões, se aproximem. Se a Europa busca um modelo que seja flexível a gastos imprevistos como aqueles impostos pela pandemia e pela guerra da Ucrânia, Afonso não vê por que o Brasil também não possa encontrar o seu.

Maria Cristina Fernandes é jornalista.

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