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Mariana Mazzucato: A nova estratégia industrial brasileira

Orientada por missões, ela pode desbravar trilha a ser seguida pelo mundo.

Tradução de Sabino Ahumada

Valor Econômico, 22/01/2024

A nova estratégia industrial do Brasil, a ser anunciada hoje, sinaliza uma mudança de maré – uma com potencial para colocar o país em um rumo de desenvolvimento econômico definido por um crescimento direcionado que seja sustentável, inclusivo e resiliente.

A estratégia se dá no contexto de um retorno das políticas industriais em diversas partes do mundo – de governos cada vez mais assumindo seu papel na definição da forma como suas indústrias evoluem. Desde os investimentos de mais de US$ 2 trilhões dos Estados Unidos em uma “estratégia industrial americana moderna”, em parte como resposta ao desenvolvimento industrial chinês guiado pelo Estado, até os investimentos de quase € 2 trilhões cia União Europeia, fica claro que a corrida começou. No entanto, que tipo de corrida?

Para assegurar que a população e o planeta se beneficiem, tais estratégias precisam ter como alvo solucionar desafios sociais fundamentais-desde os relacionados ao aquecimento climático, à saúde e ao bem-estar até os ligados à digitalização. Todos eles exigem a mobilização de investimentos públicos e privados em torno a missões concretas, que sejam firmemente dirigidas pelo governo, embora isso também exija inovação e investimentos em todos os setores da economia. Da mesma forma que a missão à Lua não exigiu apenas a inovação aeroespacial, mas também em nutrição, materiais, eletrônica e software, qualquer missão relacionada ao clima exigirá investimentos em áreas diversas, como as de alimentos, de construção, de transporte e, claro, de fontes de energia renovável. Em vez disso, muitos países estão retomando a velhas formas de estratégia industrial, cujo foco é promover setores e tecnologias individuais, ou tratar o crescimento como se fosse a própria missão.

Uma abordagem orientada por missões é sustentada por uma compreensão do papel do Estado na formação de uma economia que, ex ante, seja sustentável e pré-distributiva. Isso contrasta com a ideia mais tradicional, que relega o papel do Estado a corrigir falhas de mercado e a adotar uma colcha de retalhos de políticas isoladas, em que se buscam objetivos econômicos separadamente dos ambientais e sociais.

A estratégia industrial do Brasil orientada por missões, na qual tive a honra de colaborar com informações (inclusive em meu relatório recente), almeja fazer com que os objetivos sociais, ambientais e econômicos estejam alinhados, e destaca o potencial de transformar desafios – como fome, mudanças climáticas e crises de saúde – em oportunidades de negócios e em canais de investimento.

Tal abordagem tem potencial para gerar um efeito multiplicador, com cada real investido pelo governo trazendo um impacto amplificado no Produto Interno Bruto (PIB). A missão Apollo para levar um homem à Lua e trazê-lo de volta gerou, para cada dólar investido, um retorno de US$ 5 a US$ 7 em impactos econômicos, graças aos muitos problemas que precisaram ser solucionados e que acabaram desencadeando inovações, como telefones com câmera, cobertores aluminizados, fórmulas infantis e softwares.

A estratégia do Brasil orientada por missões poderia ajudar a estimular o investimento das empresas em inovação, que no Brasil é historicamente baixo, para enfrentar problemas estruturais como a dependência em relação à agricultura e aos recursos naturais, contribuindo para que a produção suba degraus na cadeia de valor e para, por exemplo, catalisar um ecossistema mais competitivo em torno aos serviços digitais, que por sua vez poderia sustentar cadeias de abastecimento mais verdes. A própria Amazônia pode transformar-se em uma oportunidade estratégica, por exemplo, por meio de uma missão de combate às mudanças climáticas e ao desmatamento, que aproveite a biodiversidade da região e envolva os mais diferentes setores, como agricultura, biotecnologia, saúde, água e turismo.

A jornada está apenas no início. Para que essa abordagem tenha sucesso, a colaboração inter-ministerial e intersetorial será crucial. A estratégia industrial não pode ser apenas de responsabilidade do Ministério da Indústria e Comércio. Todos os ministérios precisam estar engajados na conquista de objetivos comuns, que alinhem as prioridades do governo. Por exemplo, cada ministério pode repensar a forma como usa seu processo de compras públicas. A estratégia industrial do Brasil foi elaborada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Industrial (CN-DI), integrado por 20 ministros e pelo presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). À medida que a estratégia for implementada, será importante dobrar os esforços em prol de uma abordagem que inclua todo o governo.

De forma importante, essa estratégia exigirá uma agenda paralela de transformação do Estado. Isso significa investir na capacidade cio serviço público – em vez de encolhê-lo ou desmantelá-lo, como outros governos fizeram em nome da austeridade, ou de terceirizar funções essenciais para grandes firmas de consultoria, o que enfraquece a capacidade dos governos de enfrentar desafios complexos, como defendo no meu livro, “A Grande Falácia”. Os governos precisam ter capacidades dinâmicas – incluindo, por exemplo, a habilidade de trabalhar efetivamente entre ministérios, de estruturar uma governança digital sólida e de criar parcerias público-privadas para maximizar o valor público.

Eles também precisam de instituições orientadas por missões – o que inclui as empresas estatais. A Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), a Finep e o BNDES, por exemplo, podem ser aproveitados como veículos para colocarem prática a estratégia industrial do governo e para estruturar e canalizar o financiamento à pesquisa e desenvolvimento, à inovação e ao desenvolvimento empresarial, em apoio a suas missões.

De forma vital, o processo de compras públicas – que no Brasil representa cerca de 12% a 15% do PIB – pode se tornar uma alavanca estratégica, desenvolvendo mercados internos que ofereçam novas oportunidades para as empresas (incluindo as pequenas e médias) e criando demanda para produtos que são cruciais para resolver grandes problemas. Todos os ministérios podem ver as compras públicas como uma oportunidade para estimular a inovação – por exemplo, para melhorar os serviços públicos e a infraestrutura, desde os transportes até à forma como as escolas são construídas – por parte de empresas que estejam dispostas a trabalhar com o governo na transformação.
O governo do Brasil está posicionando o uso estratégico das compras públicas como um motor central de sua estratégia industrial, inclusive por meio de seu Novo Programa de Aceleração do Crescimento. Somada a disposições que deem preferência às empresas brasileiras, a abordagem do Brasil para as compras públicas poderia exigir condições do setor privado para permitir o acesso a contratos públicos, com o objetivo de maximizar o seu valor público – por exemplo, condições relacionadas ao alinhamento com as missões do governo; ao acesso e à acessibilidade em termos de custo; ao compartilhamento de lucros e de direitos de propriedade intelectual; e ao reinvestimento em atividades produtivas, como pesquisa e desenvolvimento e formação de trabalhadores, em vez de em atividades improdutivas, como recompras de ações.

O recém-retomado Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS) do Brasil é um bom exemplo da mentalidade orientada por missões do governo como um todo que será necessária para o sucesso da estratégia industrial do Brasil. O CEIS transforma os desafios da saúde em oportunidades de inovação e investimento. Em parte por meio do uso das compras públicas e das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo, que condicionam o acesso ao mercado interno a acordos de transferência de tecnologia, o CEIS expandiu o acesso a produtos de saúde estratégicos, como as vacinas contra a covid-19, ao mesmo tempo em que fortaleceu a capacidade do Brasil para desenvolver e fabricar esses produtos e reduziu preços.

A estratégia industrial brasileira também estará bem servida por uma abordagem ponderada no que se refere ao envolvimento dos cidadãos, para estimular a confiança e adesão. O CNDI inclui 21 representantes da sociedade civil, provenientes de organizações industriais e trabalhistas, e tem se engajado com muitos outros, o que é um bom começo. As missões, porém, são mais bem-sucedidas quando são claras e inspiradoras, e tocam diretamente em questões a respeito das quais as pessoas se importam – por exemplo, sua saúde, o acesso a alimentos nutritivos e as mudanças climáticas.

Em suma, o Brasil pode estar no caminho para demonstrar ao mundo o que se precisa para levar a sustentabilidade e a inclusão ao cerne da estratégia industrial. Para fazer isso, contudo, terá que evitar a tentação de moderar a capacidade transformacional do Estado e manter um grande foco na promoção de um serviço público confiante, capaz e coordenado, assegurando ao mesmo tempo que as vozes daqueles que antes eram deixados para trás estejam à mesa para ajudar a definir um novo rumo radical para o crescimento econômico.

Mariana Mazzucato é professora da University College London, e autora de quatro livros, entre eles “Missão Economia: Um Guia Inovador para Mudar o Capitalismo”.

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