A derrota do presidente Jair Bolsonaro na disputa pela reeleição dá uma grande oportunidade a um país inteiro: ignorar o que o agora futuro ex-presidente terá a dizer daqui em diante.
Ninguém corre o risco de perder nada com a nova correlação de forças.
Bolsonaro só chegou até onde chegou, com quase 58 milhões de votos obtidos neste domingo (30), porque foi normalizado durante anos como voz autorizada a receber holofotes a cada barbaridade que pronunciava desde seus tempos de deputado.
A lista de absurdos é imensa.
Ele já defendeu o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, disse que no Brasil as coisas só iriam pra frente quando 30 mil pessoas fossem exterminadas em uma guerra civil, ameaçou dar uns tapas numa colega da Câmara e bateu no peito para afirmar, diante das câmeras, que era homofóbico com muito orgulho, sim.
Tão homofóbico a ponto de preferir ver um filho morto em um acidente a ter um filho homossexual.
Cada novo disparate ganhava ampla repercussão em um momento da história em que, já pautado pela lógica das redes, o jornalismo se confundia com entretenimento e programa de auditório – e vice-versa. Bolsonaro era pop e dava clique. Até que a piada virou um grande fuzil apontado para a própria população, como o que seu aliado
Roberto Jefferson (PTB) guardava em casa ao receber a visita de policiais escalados para cumprir o seu mandado de prisão.
Bolsonaro viralizava a cada nova aparição em programas tipo CQC e Luciana Gimenez e viralizando chegou até onde chegou sendo apontado como candidato viável à Presidência da República, mesmo tendo a intimidade com o pensamento lógico e racional similar a de um pombo jogando xadrez.
Seu mérito, até aqui, foi vocalizar como poucos o antipetismo que já esgarçava o tecido social e político nacional. Tirando isso, não sobrava nada além de perturbação, recalque e capacidade de ampliar em algumas jardas as crises com que precisou lidar ao longo do mandato.
Sabe-se que o bolsonarismo seguirá ativo entre eleitores, governadores e parlamentares que conseguiu emplacar pelo país.
Mas, se todo mundo combinar direitinho, o líder mor da seita pode dormir tranquilo pelos próximos quatro anos na irrelevância de onde jamais deveria ter saído.
Esse deve ser o primeiro compromisso de jornalistas profissionais, analistas e formadores de opinião capazes de ligar lé com cré sem cair na tentação do clique fácil e sem contexto que permita noticiar o absurdo como absurdo.
Nos últimos anos, flertamos com o realismo mágico toda vez que nos obrigamos a ouvir o que tinha a dizer não um tio desajustado do churrasco, mas um presidente que desfilava com o coração de um monarca no Sete de Setembro, discursava sobre sua capacidade de ereção e ainda deixava parte da plateia atônita e aliviada porque dessa vez não chamou ninguém de canalha nem prometeu desobedecer ordem judicial.
Nada disso era possível ignorar porque, afinal, o doido gritando que era imbrochável era, de repente, o presidente da República.
Dilemas como dar pelota ou não a um presidente que trouxe um comediante para comentar os números do PIB , ao que parece, não estarão no horizonte nos próximos quatro anos – a não ser, é claro, que ele descole uma boquinha em alguma secretaria dos estados onde aliados foram eleitos.
Imagina, que sonho?
Ter a chance de simplesmente não noticiar ou não ficar sequer sabendo da piada do ex-futuro presidente sobre pênis de pessoas asiáticas?
Ou poder ignorar por completo o que Bolsonaro pensa sobre as futuras crises sanitárias?
E poder simplesmente não noticiar quando ele resolver se transformar em garoto-propaganda de cloroquina? Ou quando decidir ligar vacina a jacarés, morte, invalidez e vírus da Aids e dizer que o melhor imunizante a um vírus que matou mais de 680 mil compatriotas era se contaminar.
A postura no futuro é questionar: Sabe quem está dizendo isso? Ninguém que tenha (mais) influência sobre ministérios-chave como Saúde e Educação .
Não é um alívio?
Poder ignorar Bolsonaro daqui em diante é a melhor notícia que recebeu neste domingo (30) quem acompanha há anos a dança ensaiada na beira do precipício com um teco de noção histórica e preocupação.
Não, o bolsonarismo não acaba com a derrota de seu mito fundador.
Mas se alguma coisa aprendemos nesses últimos anos é que não se pode dar palco para extremista dançar. Não de novo.
Matheus Pichonelli é jornalista.