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Rodrigo Freitas: Francisco, um exemplo de universalidade na fé e na política

O papa Francisco se foi. Agora, a Igreja Católica debate a sucessão daquele que, do ponto de vista pastoral, foi o maior líder do catolicismo de todos os tempos. Se nem Jesus agradou a todos, é impensável que um papa agrade. No entanto, a comoção mundial – inclusive entre membros de outras religiões – demonstra a influência que o pontífice alcançou em seus 12 anos de papado.

Hoje, caro leitor e cara leitora, peço licença para deixar de lado as minhas reflexões sobre a nossa querida Contagem para abordar o legado de um homem que marcou época. Tenho lido diversas análises e assistido a vários videocasts que tratam do pontificado do primeiro papa latino-americano da história da Igreja. Entre as críticas, aqueles que defendem um progressismo mais direto argumentam que Francisco não alterou dogmas e doutrinas da Igreja Católica. Começo minha análise por esse ponto.

Imagine um grande transatlântico navegando entre continentes. A Igreja é como esse transatlântico. Como o capitão que o guia, o papa não conseguiria mudar o rumo da embarcação de uma hora para outra com um giro de 180°. Para que essa direção mude verdadeiramente, o processo é mais lento. O primeiro passo é planejar o movimento e depois executá-lo gradualmente: no transatlântico, para garantir o conforto dos passageiros e a estabilidade de móveis, objetos e tudo o que está dentro da embarcação. Na Igreja, para não causar um espanto ainda maior em mentes conservadoras e assegurar cada conquista, como quem come o boi em bifes.

Foi isso que Francisco fez. Em sã consciência, é impossível imaginar que um papa recém-chegado ao comando de uma Igreja de 2.000 anos transformasse tudo instantaneamente. Francisco não foi um reformador por pura definição, mas um agregador que aproximou os afastados da fé. E o melhor: uniu uma postura de gestos de amor e afeto – essencial no ambiente religioso – com uma importante mensagem política em defesa da igualdade. Em vez de muros, Francisco construiu pontes, inclusive com outras religiões. Em vez de um papa e uma Igreja que condenam, Francisco escolheu acolher e incluir, mesmo mantendo os dogmas de 2.000 anos atrás. Francisco mostrou que o amor de Deus pode e deve ser para todos.

“Se uma pessoa é gay, quem sou eu para julgá-la?”, disse Francisco no início de seu pontificado à repórter Ilze Scamparini, da Globo, a bordo do avião papal durante sua visita ao Brasil em 2013. A declaração causou espanto em muitos. Mas me pergunto: quantas famílias reconsideraram sua posição ao ouvir as palavras do sumo pontífice?

Anos depois, Francisco afirmou que os pais jamais deveriam expulsar filhos homossexuais de casa, mas sim, acolhê-los com amor. Algo que pode parecer natural para mim ou para você, mas que certamente levou muitas cabeças fechadas a repensarem sua postura.

O poder de um papa, assim como o de um governante, muitas vezes não reside em mudar tudo de imediato, mas em usar a força de sua palavra, carisma e autoridade para iniciar mudanças. Francisco deu voz a quem não podia falar. Além dos homossexuais, imigrantes, pobres, excluídos, crianças, ciência e sustentabilidade ganharam destaque inédito na Santa Sé. Se não alterou a doutrina, ele mudou a narrativa. E essa é uma grande conquista que merece ser celebrada e lembrada quando se falar em Francisco.

Muito para além de uma análise mais política de seu pontificado, guardarei para sempre a imagem do papa humano, que parecia um de nós, do humor afiado, do papa acessível, carinhoso e simples. Recordarei o papa que insistiu em andar em carro popular com os vidros abertos, assombrando sua segurança, quando veio ao Brasil para se aproximar dos fiéis. Francisco era aquele cara com quem daria vontade de sentar num bar, tomar cerveja e falar sobre a vida. Sim, um papa com quem dava vontade de fazer coisas normais…

Francisco demonstrou que a autoridade não se impõe com gritos ou violência. Francisco evidenciou que a Igreja pode ser menos juíza e mais mãe para aproximar as pessoas do Sagrado. Não me importa se Francisco não conseguiu ou não quis mudar doutrinas. O que me importa é a narrativa que marcou seus 12 anos de papado. Ele é um marco na história da fé.

Francisco é um desses fenômenos raros que nos alegram por poder presenciar seu legado, sabendo que outro como ele não surgirá tão cedo. Resta torcer para que a Igreja aprenda as lições do “papa que veio do fim do mundo”, como ele mesmo se apresentou em sua primeira aparição como pontífice. Que os cardeais no conclave compreendam que o movimento pastoral é também um exercício político em busca de igualdade e justiça social.

Rodrigo Freitas é jornalista

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