O livro “Biografia do abismo”, dos cientistas sociais Felipe Nunes e Thomas Traumann causou rumor ao identificar uma “calcificação” da polarização política entre o “lulismo” e o “bolsonarismo” que teria chegado ao cotidiano da sociedade brasileira dividindo famílias, interferindo nas decisões dos empresários e “comprometendo o futuro do Brasil”, como informam os autores no subtitulo.
Calcificação é uma palavra muito forte. É oriunda da biologia e se refere ao processo de enrijecimento de tecidos moles devido ao acúmulo de cálcio, formando calos, obstruindo canais de passagem como as artérias e levando a uma redução da mobilidade que pode ser fatal.
Nesse caso, a “calcificação da polarização política” entre esquerda e direita passaria a ser um dado a ser considerado nas projeções e diagnósticos sobre a realidade brasileira tendo em vista a construção de “pontes sobre o abismo que separa as duas bolhas”, como disse Traumann.
Exemplo do rebatimento dessa a polarização seriam as eleições municipais deste ano. Em artigo no jornal O Globo, em dezembro passado, Felipe Nunes apontou para uma ampla influência dos dois polos nas disputas municipais: “(…) mesmo nas cidades em que PT e PL não duelarão pela vitória, os candidatos competitivos se organizam em torno de Lula e Bolsonaro”, escreveu Nunes, relacionando, a seguir os exemplos de São Paulo, Rio, Recife, etc, onde os candidatos favoritos têm o apoio ou de Bolsonaro, ou de Lula.[1]
Conheço o trabalho dos autores, que são nomes de referência nacional nas conversas sobre projeções e estatísticas eleitorais. O problema é que ao abordarem a polarização que, de fato, aconteceu e, de fato, dividiu o país nas eleições de 2020, eles pretendem inferir desdobramentos que vão muito além das disputas eleitorais, transbordando seus efeitos para a vida cotidiana. A polarização estaria, como escreveram, dividindo famílias, interferindo nas decisões dos empresários e comprometendo o futuro do Brasil.
Não acredito que possa acontecer um esgarçamento do tecido social brasileiro nesta extensão, em função da polarização das preferências políticas e ideológicas.
Cito dois exemplos de relevância óbvia.
O primeiro é a continuidade do firme protagonismo do Judiciário como fiador da democracia e no enfrentamento à extrema-direita golpista ( inclusive com a anulação dos processos da lava-jato), com plena anuência do Executivo e do Legislativo federal. “Nunca a cúpula do Judiciário exerceu com tamanha força o poder de dissuasão de que dispõe, e consequentemente nunca os gabinetes do STF e do STJ foram tão buscados para a composição de interesses”, escreveu César Felício em artigo que reproduzimos neste blog.[2]
O segundo exemplo está na política de reindustrialização (Nova Indústria Brasil), lançada pelo governo federal em janeiro, com amplo apoio da Confederação Nacional da Indústria (CNI), em que pensem as tradicionais ponderações sobre o que precisa ser melhorado. Trata-se de uma das mais extensas e abrangentes parcerias entre governo e setor privado no Brasil nas últimas décadas, com duração prevista para 10 anos, pelo menos. Em artigo que também pode ser lido neste blog, o presidente da CNI, Antonio Alban escreveu que “Quem é contra a nova política industrial é contra o Brasil”. [3]
Estes exemplos, acredito, sinalizam não para uma divisão radical e permanente da sociedade brasileira, mas para uma clara recomposição entre esquerda e direita e, ressalte-se, entre as elites nacionais.
Até o momento, o custo dessa convergência — que leva à pacificação do país — vem sendo a concessão de crescentes recursos políticos e econômicos ao Congresso que, como sabemos, tem atualmente uma franca maioria bolsonarista. O “centrão”, entretanto, jamais representou e não representa, a base de partida para algum programa ou projeto nacional alternativo. Trata-se de um grupamento fragmentado, sem ideologia própria e só unificado pelo pragmatismo, exceto, talvez, pela bancada do moralismo conservador. No mais, pagando bem, eles votam com o governo.
Além dessa convergência por cima, há uma outra dimensão que dificulta um entranhamento da polarização até o ramerrão do dia a dia em escala ampliada. Refiro-me à fragmentação e complexificação das sociedades atuais.
Desde o século XIX até a primeira metade do século XX, partidos e ideologias estavam muito claramente vinculados a projetos de classe. A esquerda (comunistas, socialistas, anarquistas, trabalhistas e social-democratas) se identificavam com as classes trabalhadoras e tinham uma pauta organizada, basicamente, em torno de questões econômicas, como a jornada de trabalho, os salários e os direitos protetivos aos trabalhadores. Já a direita (conservadores, liberais, democratas cristãos, etc.) se identificam com as classes proprietárias e tinham uma pauta concentrada da defesa do livre mercado e redução do papel do Estado nos assuntos da sociedade civil.
A partir da segunda metade do século XX, este arranjo foi desarticulado por fenômenos como a globalização, a queda do Muro de Berlim, o desaparecimento da União Soviética ( URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), a “nova revolução” dos meios de comunicação e a reorganização do mundo do trabalho com a introdução de novas tecnologias de gestão e produção, dentre outros eventos. Estes acontecimentos impactaram profundamente as fronteiras divisórias entre esquerda e direita que se tornaram menos nítidas, dando origem à chamada “Terceira Via” europeia.
Não é propósito deste artigo adentrar neste tema, o da “Terceira Via”. Recomendo para isso a leitura de Anthony Giddens, sociólogo britânico que, a meu ver, é quem melhor fundamenda esta proposta de solução para a crise da esquerda marxista mundial. [4]
O fato é que as questões típicas do velho padrão de confronto entre os dois campos principais passaram a conviver (e em algumas casos a serem ultrapassadas ) com uma pauta nova, na qual têm amplo espaço o problema ambiental, as questões de gênero, o identitarismo, o acirramento da ânsia por liberdade individual, as novas dimensões do drama da segurança pública, etc. Emergem novos atores disputando a preferência da opinião pública e antigo monopólio sobre a imaginação, exercido pela direita e pela esquerda tradicionais foi rompido, rompendo-se, também, certa uniformidade dos campos de pensamento.
Em razão dessa mudança, hoje é comum que os partidos adotem, simultaneamente, posições progressistas e conservadoras, na dependência do tema. O mesmo ocorre com o cidadão que, por exemplo, pode ser contra a privatização de estatais (e com isso ser perfilado como de esquerda) e, ao mesmo tempo, se declarar contrário à legalização do aborto e, com isso, ser computado como de direita. Esse tipo de contradição vem sendo registrado há décadas por inúmeras pesquisas sobre como as pessoas pensam. Quando confrontadas com as perguntas dos entrevistadores, as pessoas respondem “concordo” ou “discordo” por razões de pura conveniência e, quase sempre, de forma irrefletida.
A verdade é que o mundo é grande e complexo demais para que as pessoas comuns se posicionem sobre temas referenciando-os num projeto existencial articulado e sistemático, como fazem os intelectuais, líderes políticos e doutrinadores. Ou como faz o chamado “núcleo duro” daqueles que expressam alguma preferência partidária e que são amplamente minoritários nas sociedades contemporâneas. Isso explica o fato de a aprovação do presidente Lula, hoje, ser maior que sua votação, como já apontam algumas pesquisas.[5]. À medida que o governo entrega bons resultados e consegue dar uma solução para os problemas da vida que o cidadão possa considerar boa, é inevitável que uma parcela dos eleitores bolsonaristas passem a apoiar o Governo Lula. Fatos da vida.
Finalmente, não pretendo negar que existência de uma polarização. Mas insisto que ela não se cristalizou e que dificilmente se cristalizará de cima a baixo da sociedade brasileira, pelas razões que apontei.
Todavia, é preciso ter em mente que os processos de radicalização política são induzidos. A autodeclaração “de direita” viveu um boom durante o governo Bolsonaro e ainda se mantém elevada tanto porque se trata de um fenômeno recente, quanto em razão do esforço da extrema direita para manter o bolsonarismo como uma força competitiva. Para entender como isso funciona, cabe lembrar que, em 2018, só 9% dos brasileiros se declaravam totalmente de direita, de acordo com a pesquisa de opinião pública “A Cara da Democracia”, realizada pelo Instituto da Democracia (IDDC-INCT). Esse número dobrou no ano seguinte e, em setembro de 2022, alcançou 24%, no maior patamar em cinco anos. Mas, na edição mais recente da pesquisa, que foi a campo em agosto do ano passado, com Bolsonaro já inelegível e com o governo Lula apresentando bons resultados, este índice recuou para 22% – uma queda de dois pontos percentuais e ainda dentro da margem de erro, mas, que pode sinalizar para um refluxo da maré. [6]
Nesse sentido, as eleições municipais deste ano devem ser observadas atentamente. Como já disse em outros artigos, discordo de Felipe Nunes quando aponta para uma influência determinante na polarização nas eleições municipais que se aproximam, e me alinho a observadores e analistas como Cândido Vaccarezza[6], José Prata[7], César Felício[8], Simon Schwartzman [9] e outros. Alias, por razões de justiça, é bom lembrar que o próprio Nunes já relativizou essa opinião. [10]
Ainda assim, devemos aguardar o resultado das eleições para saber se deu certo o esforço de alguns setores, inclusive do PT, para nacionalizar a eleição transformando-as num repeteco da disputa de 2022. Acho que não vai funcionar, mas veremos.
Ivanir Corgosinho é sociólogo.
[1] A eleição municipal da polarização. Felipe Nunes, jornal o Globo, 31/12/2023. Disponível em https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/12/a-eleicao-municipal-da-polarizacao.ghtml
[2] César Felício: Bolsonaro busca as ruas porque está fraco. Blog do Zé Prata e Ivanir, 24/02/2023. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/cesar-felicio-bolsonaro-busca-as-ruas-porque-esta-fraco
[3] Ver Antonio Alban: Quem é contra a nova política industrial é contra o Brasil. Blog do Zé Prata e Ivanir, 03/02/2024. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/antonio-alban-quem-e-contra-a-nova-politica-industrial-e-contra-o-brasil/
[4] GIDDENS, Anthony (Org.). O Debate Global sobre a Terceira Via. São Paulo: UNESP, 2007.
[5] Os índices de popularidade do governo Lula, segundo nova pesquisa Atlas.Carta Capital, 06/02/2024. Dispinível em https://www.cartacapital.com.br/politica/os-indices-de-popularidade-do-governo-lula-segundo-nova-pesquisa-atlas/
[6] O GLOBO, 12/09/2023. Duas vezes mais brasileiros se dizem de direita do que de esquerda, indica pesquisa; confira os números. https://oglobo.globo.com/blogs/pulso/post/2023/09/duas-vezes-mais-brasileiros-se-dizem-de-direita-do-que-de-esquerda-indica-pesquisa-confira-os-numeros.ghtml
[6] Ver Cândido Vacarezza, Ilusões sobre o papel da polarização nacional nas eleições municipais. Poder 360, 05/02/2024. Disponível em https://www.poder360.com.br/opiniao/ilusoes-sobre-o-papel-da-polarizacao-nacional-nas-eleicoes-municipais
[7] Ver José Prata: 2024, o ano que poderá marcar nossas vidas em Contagem. Blog do Zé Prata e Ivanir, 20/01/2024. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/6256-2
[8] Ver César Felício: Força de prefeitos relativiza polarização nas eleições. Blogo do Zé Prata e Ivanir. 20/01/2024. Disponível em https://www.zeprataeivanir.com.br/cesar-felicio-forca-de-prefeitos-relativiza-polarizacao-nas-eleicoes
[9] SCHWARTZMAN, Simon. Polarização e calcificação da política. Simon’s Site, 16/01/2024. Disponível em https://www.schwartzman.org.br/sitesimon/polarizacao-e-calcificacao-da-politica
[10] Veja o artigo de César Felício “Força de prefeitos relativiza polarização nas eleições”, já citado.