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Thiago Zanini: Ur-Bolsonarismo, ou porque intitular o bolsonarismo como fascismo

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Em 1995, Umberto Eco publicou no New York Review of Books um ensaio com o título “Ur-Fascism”, adaptado de um discurso por ele realizado na Columbia University: o professor retornava à sua experiência pessoal com o fascismo italiano, propondo uma matriz para análise dos sinais (patognomômicos?) que prenunciariam a mudança de um regime político em direção ao fascismo.

Primeiramente, em guisa de apresentação esquemática dos pontos quatorze característicos do que o professor Umberto Eco chamou de fascismo primitivo e eterno (ou Ur-Fascismo), recuperamos o texto original em inglês os conceitos, e constatamos que tinha razão o grande ensaista italiano: tais atributos não precisam se organizar em um sistema coeso, muitos podem ser contraditórios entre si e, ainda, são típicos de outras formas de despotismo ou de fanatismo. Todavia, basta a presença de um atributo para que o fascismo se materialize a partir desta base.

1. A primeira característica do fascismo eterno é o culto à tradição. Não pode haver progresso no conhecimento. A verdade foi estabelecida de uma vez por todas, e estamos limitados a interpretar sua mensagem obscura cada vez mais claramente.

2. O conservadorismo implica a rejeição do modernismo. A rejeição do mundo moderno é disfarçada de rejeição do modo de vida capitalista, mas consistiu principalmente na rejeição do espírito de 1789 (da Revolução Francesa, e de 1776, a Declaração de Independência dos Estados Unidos). O Renascimento, a Era da Razão, anunciou o início da depravação moderna.

3. O fascismo eterno mantém o culto da ação pela ação. A reflexão é uma forma de emasculação. Consequentemente, a cultura é suspeita por ser sinônimo de pensamento crítico. Os pensadores fascistas oficiais dedicaram muita energia a atacar a cultura moderna e a intelectualidade liberal por traírem esses valores tradicionais.

4. O fascismo eterno não resiste à crítica analítica. O espírito crítico faz distinções, e isso é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica baseia o progresso do conhecimento na discordância. Para o fascismo eterno, discordância é traição.

5. Além disso, discordância é sinônimo de diversidade. O fascismo eterno se desdobra e busca o consenso explorando e exacerbando o medo inato da diferença. O fascismo é definido por ser xenofóbico e racista.

6. O fascismo eterno se baseia na ocorrência de uma frustração individual ou social. É por isso que um dos critérios mais típicos do fascismo histórico foi a mobilização de uma classe média frustrada, uma classe que sofre com a crise econômica ou com o sentimento de humilhação política, e assustada com a pressão que grupos sociais inferiores exerceriam.

7. Às pessoas privadas de uma identidade social clara, o fascismo eterno responde que seu único privilégio, bastante comum, é ter nascido no mesmo país. Esta é a origem do nacionalismo. Além disso, aqueles que darão substância absoluta à identidade da nação são seus inimigos. Assim, na raiz da psicologia do fascismo eterno reside uma obsessão com a conspiração, potencialmente internacional. E seus perpetradores devem ser processados. A melhor maneira de combater a conspiração é apelar à xenofobia. Mas a conspiração também deve poder vir de dentro. Existe sempre um complô, e os judeus ou os comunistas foram traz a vantagem de ser um inimigo ao mesmo tempo interno e externo ao país.

8. Os asseclas do fascismo devem se sentir humilhados pela riqueza e poder ostensivos de seus inimigos. Os governos fascistas se condenam a perder as guerras que travam porque são fundamentalmente incapazes de avaliar objetivamente as forças inimigas.

9. Para o fascismo eterno, não há luta pela vida, mas sim uma vida dedicada à luta. O pacifismo é um compromisso com o inimigo e é ruim a partir do momento em que a vida se torna uma luta permanente.

10. O elitismo é um aspecto característico de todas as ideologias reacionárias. O fascismo eterno só pode promover o elitismo popular. Todo cidadão pertence ao melhor povo do mundo; os membros do seu grupo social estão entre os melhores cidadãos; todo cidadão pode ou deve se tornar membro do grupo (ou do partido, na análise de Eco). Finalmente, o elitismo traz consigo o desprezo aos fracos.

11. Nessa perspectiva, todos são convidados a se tornarem heróis. O herói do fascismo eterno sonha com uma morte heroica, que lhe é oferecida como a recompensa final por uma vida heroica, e a impaciente busca pela morte, pode levar vários membros do grupo à morte.

12. O fascista eterno transporta sua vontade de poder para o âmbito sexual. Ele é machista, e leva ao desprezo às mulheres e intolerância e condenação de costumes sexuais – para estes – anormais, notadamente a homossexualidade. Ainda, tanto a guerra quanto o sexo são jogos difíceis de jogar, e o herói fascista eterno tem sempre um fascínio pelas armas de fogo, seu elemento fálico.

13. O fascismo eterno baseia-se no populismo seletivo, ou, pode-se dizer, no populismo qualitativo. O Povo é percebido como uma qualidade, uma “entidade monolítica” que expressa a “Vontade Comum”. Se um grande número de pessoas não consegue realizar uma Vontade Comum, cabe então ao Líder então reivindicar ser seu intérprete. Tendo perdido seus poderes delegados, os cidadãos não agem; são chamados a desempenhar o papel do Povo.

14. O fascismo eterno fala a Novilíngua. A Novilíngua, inventada por Orwell em 1984, é a língua oficial do Ingsoc, ou socialismo inglês. Caracteriza-se por um vocabulário pobre e uma sintaxe rudimentar, limitando os instrumentos de raciocínio crítico e pensamento complexo, como visto como o material escolar produzido pelo Fascismo italiano, e, claro, pelo Nazismo.

A República parecia sólida, e a democracia, próspera. Tendíamos a tratar o fascismo como uma história antiga, um capítulo encerrado nos livros de história. Ou um espantalho ridículo, teimosamente brandido por ativistas obtusos. Estamos errados. Não porque Mussolini ainda tenha seus apoiadores e Hitler, seus nostálgicos. Não porque os anos 1930 estejam de volta, com os camisas-pardas batendo à nossa porta. Mas, pelo contrário, porque o que devemos continuar a chamar de “fascismo” tem mais de uma face e mais de um truque na manga. Se pôde ressurgir, o bolsonarismo é a face tropical do movimento da recrudescência do fascismo.

Os pensadores modernos (Primo Levi, Hannah Arendt, Robert O. Paxton, Enzo Traverso e Barbara Stiegler) indicaram outros aspectos, podendo existir fascismo inclusive na ausência de um lider manifesto. Urge reconectar-se com o legado desses pensadores, que nos lembram que a luta contra o desumano sempre começa com a vigilância em relação à linguagem, às representações e às relações de poder. Em tempo, o fenômeno também poderia também ser islâmico, pós-moderno, pós-democrático — mas sempre nostálgico, autoritário e intransigente.

Realmente, esta visão de totalitarismo fuzzy (termo que pode ser traduzido por fluido, confuso, impreciso) permanece fascista mesmo que se elimine um ou mais aspectos supra designados. Poderíamos fechar nossa pequena contribuição com a identificação de atos da facção bolsonarista em cada um dos arquétipos anteriormente apresentados, mas cada leitor terá, em primeira leitura, um episódio recente da política nacional para encaixar nos quatorze caracterizadores do fascismo.

Em uma próxima contribuição, falaremos sobre a formação da rede de influência do Bolsonarismo, com um aprofundamento da teoria de jogos de Wittgenstein, apresentada por Eco para tratar a aproximação de grupos diferentes que exibem apenas alguma “semelhança familiar”, sob o prisma da Teoria das Redes e a força dos elos fracos, do sociólogo Marc Granovetter, e como o estudo explicaria a expansão de ideias tão abjetas, com tanta facilidade e rapidez.

Thiago Zanini é Secretário Municipal de Tecnologia da Informação

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