A recente operação que resultou em dezenas de mortos no Rio de Janeiro, chamada “Operação Contenção”, reacende um debate essencial: criminosos ceifados na rua resolvem, de fato, o problema da violência? Ou estamos diante de uma estratégia descontínua, movida por lógica midiática e interesses políticos, que agrava ciclos de violência e fragiliza o Estado de Direito?
Defender a ordem pública exige coragem, mas essa coragem não pode se confundir com optar por medidas que equiparam o Estado às práticas das facções. Segurança pública se constrói com técnica, planejamento e respeito às instituições; não com espetacularização de ações pontuais.
Operações policiais executadas com foco narrativo, com imagens para redes sociais, ângulos para repercussão imediata e manipulação da opinião pública, ampliam a sensação de ação, mas não garantem resultados sustentáveis.
Quando o critério para intervenção é a repercussão política, e não evidências de eficácia, o risco é duplo: o desgaste das corporações que atuam sem planejamento adequado e a retroalimentação da violência, com novas retaliações e medo coletivo. A segurança pública se torna, assim, palco de disputas partidárias, em vez de política de Estado voltada à proteção da vida e à pacificação dos territórios.
Uma política pública que se limita à repressão imediata não apenas falha em seus objetivos, como coloca em risco quem está na linha de frente. Cada operação mal planejada expõe agentes públicos, em sua maioria policiais militares, a condições extremas, muitas vezes sem estrutura, preparo ou apoio psicológico. O resultado é trágico: baixas de profissionais que são enviados a campo como peças de uma engrenagem política. Perder um policial não é um dano colateral: é a perda de um servidor, de um pai, de uma mãe, de alguém que representa o Estado. Nenhuma política pública pode se considerar bem-sucedida se não preserva as vidas de quem a executa e do povo que reside nas comunidades ou fora delas.
Existem limites civilizacionais e jurídicos que definem a atuação do Estado. Quando o poder público adota práticas semelhantes às das organizações criminosas, como o uso indiscriminado da força, ausência de transparência e falta de responsabilização, corrói-se a legitimidade das instituições. Ainda que a sensação de “justiça imediata” agrade uma parcela da opinião pública, ela alimenta uma espiral de violência e fragiliza os mecanismos democráticos de controle e proteção.
O debate público sobre segurança foi sequestrado por uma guerra de narrativas que impede avanços reais. De um lado, a extrema-direita simplifica um problema estrutural em uma fórmula rasa: “bandido bom é bandido morto”. É um discurso emocional, reducionista, que parte de falácias e nega evidências científicas, usando o medo e o ressentimento como combustível político. Assim, o diálogo se torna impossível: antes de entrar no debate qualificado, é preciso desmontar a mentira.
De outro, setores da esquerda radical tratam o tema com hesitação, permitindo que a pauta da segurança seja capturada por discursos autoritários. Falta à esquerda uma linguagem que dialogue com a vida real das pessoas, especialmente as das periferias que convivem com a violência diariamente. Enquanto o discurso técnico, humanista e baseado em evidências não encontra penetração social, o populismo punitivista se fortalece, e a política pública eficaz fica sem voz, já que não é imediata.
O resultado é uma polarização estéril: de um lado, o ódio; de outro, o silêncio. No centro, o cidadão comum, refém da insegurança, do abandono histórico do Estado e de promessas que nunca chegam ao território.
A história recente mostra que chacinas não pacificam territórios, não desarticulam facções e não reduzem indicadores criminais. O que se produz é uma sequência de tragédias, ampliação do luto e descrédito institucional. Enquanto o crime organizado se reorganiza, o Estado se fragmenta entre disputas e crises de legitimidade. Como exemplo internacional emblemático, podemos citar Medellín dominada pelo cartel de Pablo Escobar. Entre o fim dos anos 1970 e início de 1990, Escobar possuia poder quase absoluto sobre o tráfico internacional de cocaína. Em 1991, a taxa de homicídios era de 380 a cada 100 mil habitantes. Já em 2013, Medellín foi considerada a cidade mais inovadora do mundo. Houve, sim, repressão por parte das forças de segurança, mas o que culminou nessa transformação, que não foi rápida ou um passe de mágica, “foi a participação da sociedade civil, das empresas, das organizações de defesa e promoção dos direitos humanos, da atuação da Força Pública que respeite os direitos das pessoas baseando-se na lei. Isso é essencial para poder construir segurança sustentável. Segurança para proteger, não para reprimir,” destaca o professor Jorge Restreppo em recente entrevista à CNN Brasil.*
É nesse contexto que Medellín foi considerada a “cidade mais perigosa do mundo” – uma reportagem da revista Time de 1988, por exemplo, chegou a usar o termo “cidade da eterna violência”.
Segurança pública não pode ser pautada por impulsos, cliques ou disputas eleitorais. Ela exige inteligência, planejamento, integração e continuidade.
A experiência de Contagem: segurança pública como política de Estado
Em Contagem, a palavra de ordem é integração. A estrutura da política pública é feita com planejamento e se apoia nos dados e na dinâmica da cidade. As forças de segurança dialogam de forma permanente, com planejamento conjunto e respeito às competências de cada instituição. Esse modelo tem produzido resultados concretos.
Um exemplo é a Operação Hefesto (lançada em 2023), coordenada pela Guarda Civil, é resultado da integração entre Polícia Militar, Polícia Civil, Corpo de Bombeiros, Ministério Público, Secretarias Municipais e órgãos de fiscalização do município, além de iniciativa privada (Cemig, Copasa, empresas de telefonia), a ação combate o furto de cabos, fios de cobre e hidrômetros, crimes que impactam diretamente serviços essenciais da população. A inovação está no caráter ampliado da operação: além da repressão à criminalidade e à receptação, a ação envolve fiscais do Meio Ambiente, de Posturas e Vigilância Sanitária nos ferros-velhos irregulares, combatendo também focos de arboviroses. Ao atacar a cadeia econômica do crime, e não apenas o autor do furto, a criminalidade cai na origem. Quando não há receptação, o furto deixa de ser um “negócio lucrativo”. O acerto na operação é demonstrado nos dados: em 2022 aproximadamente 286.390 pessoas foram afetadas por furtos de cabos aéreos e subterrâneos, em 2024 o número foi reduzido para 8.360 pessoas afetadas.
Contagem também avança na construção de um modelo regionalizado de segurança pública. Sob a liderança da Prefeita Marília Campos, está em curso a criação do 1º Consórcio Intermunicipal de Segurança Pública de Minas Gerais, iniciativa pioneira que já reúne 26 municípios interessados. O Protocolo de Intenções e a Lei Autorizativa foram chancelados em novembro, e agora seguem para tramitação nas Câmaras Municipais. A expectativa é que, no início de 2026, o Consórcio esteja oficialmente instituído, fortalecendo os municípios e permitindo atuação integrada entre as cidades, inteligência compartilhada e otimização de recursos, algo inédito no estado e raro no país: será o 5ª Consórcio neste sentido e o 3º específico da Segurança Pública.
Além da repressão qualificada e da integração institucional, Contagem investe na prevenção como política estruturante, atuando em diferentes frentes e ciclos da vida. O programa Juventude Cidadã, desenvolvido pela Secretaria de Defesa Social, formou até 2024 mais de 2.200 jovens em percursos formativos que unem cidadania, convivência e responsabilidade social. São adolescentes e jovens aprendendo sobre direitos, ética, comunidade, segurança e construção de projeto de vida. O resultado é evidente: mais engajamento, mais consciência e mais oportunidades para nossa juventude. Investir na base é reduzir, de forma concreta, a porta de entrada da criminalidade.
No enfrentamento à violência de gênero, uma das mais persistentes expressões da violência urbana, Contagem consolidou o Programa Elo por Elas, integrando ações de prevenção, acolhimento, orientação, fortalecimento de vínculos comunitários e articulação da rede de proteção às mulheres. O programa amplia o acesso à informação, capacita lideranças comunitárias e articula políticas públicas para que nenhuma mulher precise enfrentar a violência sozinha. Prevenir a violência contra a mulher é, também, política de segurança pública, pois rompe ciclos de agressão, salva vidas e protege famílias inteiras.
Reconhecendo o impacto dessas ações, o Conselho Municipal de Defesa Social deliberou, em 2025, mais de meio milhão de reais do Fundo Municipal para fortalecer e ampliar os projetos de prevenção existentes na cidade. Contagem demonstra, na prática, que segurança pública é investimento contínuo, não improviso. Os recursos são captadas em uma parceria inédita com o Ministério Público que direciona acordos provenientes de termos de ajustamento de conduta ao fundo municipal para investimento direcionado na prevenção. A medida vem ganhando destaque Estadual e já se consolida como exemplo a outros cidades.
Se queremos segurança duradoura no Brasil, precisamos ultrapassar o ciclo de espetáculos punitivistas e construir políticas que integrem repressão qualificada, inteligência, prevenção e presença do Estado nos territórios. Contagem mostra que esse caminho é possível: quando instituições dialogam, quando o foco é o cidadão e quando a política de segurança se baseia em planejamento, ciência e humanidade, os resultados aparecem.
A segurança pública não se resolve no grito, na comoção ou no improviso. Ela é construída. E quando o Estado escolhe construir e não guerrear, todos ganham: os agentes públicos, a população e a própria democracia.
Viviane França é Secretária de Defesa Social de Contagem, advogada e gestora pública. Especialista em Ciências Penais e Mestre em Direito Público pela PUC Minas. Vice-presidente do MDB Contagem e Secretária Executiva do Conselho Nacional de Secretários e Gestores Municipais de Segurança. Articuladora do CISP-MG – Consórcio Intermunicipal de Segurança Pública de Minas Gerais.
Referências
LOPES, Léo. Lições ao Rio? Como Medellín deixou de ser “cidade mais perigosa do mundo”. CNN Brasil, São Paulo, 2 nov. 2025. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/licoes-ao-rio-como-medellin-deixou-de-ser-cidade-mais-perigosa-do-mundo/. Acesso em: 7 nov. 2025.
FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024. São Paulo: FBSP, 2024. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuario-brasileiro-seguranca-publica/. Acesso em: 07 nov. 2025.
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PERASSOLO, João. Fascismo faz das notícias espetáculo; as pessoas estão viciadas em drama, diz filósofo. Folha de S.Paulo, 25 mar. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/03/fascismo-faz-das-noticias-espetaculo-as-pessoas-estao-viciadas-em-drama-diz-filosofo.shtml. Acesso em: 07 nov. 2025.