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André Nassif: Uma proposta de reindustrialização da economia

Reindustrializar não significa repor o que foi perdido da velha indústria, mas reinserir a industrialização como âncora da retomada do desenvolvimento

Valor Econômico, 30/08/2023

Qual política industrial o Brasil deve adotar para superar a estagnação das últimas décadas? Recorro à teoria e ao caso brasileiro. O desenvolvimento exitoso ocorre por meio da industrialização. Não há país desenvolvido que tenha prescindido de setor industrial diversificado. O setor manufatureiro opera como motor do desenvolvimento, porque é locus principal da acumulação de capital, da geração e difusão de progresso tecnológico e, devido ao efeito cumulativo deste último sobre a intensidade de capital e o conhecimento, proporciona maiores economias de escala e sustenta avanço da produtividade.

As tecnologias radicais em curso (robótica, inteligência artificial etc) sinalizam total integração da manufatura com o setor de serviços, mas é equivocado pressupor que a indústria deixará de comandar o crescimento econômico, já que parte expressiva dos serviços high-tech está associada ao processo fabril.

Desde 2000, a desindustrialização prematura tem sido objeto de debate acadêmico, porque a queda acentuada do valor adicionado manufatureiro no PIB, antes de o país alcançar elevada renda per capita, faz com que a economia perca tração estrutural para sustentar o desenvolvimento econômico e deflagre longo processo de estagnação. O Brasil experimentou a mais acelerada desindustrialização prematura no mundo capitalista. Entre 1980 e 2020, a participação do valor adicionado no PIB recuou de 21,1% para 11,9%. Embora os países exitosos não registrem desindustrialização nos segmentos intensivos em conhecimento, no Brasil a desindustrialização prematura atinge não apenas subsetores de média (automobilística) e alta (máquinas & equipamentos e química), mas também de baixa tecnologia (têxteis, vestuário, metalurgia básica e alimentos & bebidas).

Faz sentido, então, incluir a reindustrialização como missão prioritária da política industrial brasileira nesta década. Entretanto, reindustrializar não significa repor o que foi perdido da velha indústria, mas reinserir a industrialização como âncora da retomada do desenvolvimento brasileiro. Em trabalho recente, Paulo Morceiro e eu [1] propusemos uma política industrial que integrasse objetivos econômicos, sociais e ambientais, focada nas seguintes missões prioritárias: i) reindustrializar, promover inovações e se engajar na economia digital; ii) ampliar e/ou modernizar a infraestrutura; iii) fomentar empregos formais; iv) reduzir a desigualdade social e regional; e v) substituir tecnologias de alta por baixa emissão de CO2.

A transição para tecnologias verdes deve ser a base principal para a alavancagem tecnológica, mas todas as missões se entrelaçam: a incorporação de tecnologias limpas, por exemplo, requererá inovações, mas também ampliará oportunidades para promover a reindustrialização em subsetores de maior sofisticação tecnológica, fomentar empregos formais e reduzir a desigualdade social e regional.

A política industrial que propomos é ambiciosa e se assemelha a um plano nacional de desenvolvimento. A principal restrição à sua efetiva adoção não é de ordem financeira, mas política. Depende da articulação do governo com a sociedade, representada pelo Congresso Nacional. Começo pela missão de ampliar e modernizar a infraestrutura, que se entrelaça com todas as demais. Sem um sistema eficiente de ferrovias, rodovias e outros modais de transporte, será impossível atrair empresas dispostas a industrializar regiões atrasadas ou fomentar inovações nas áreas que abarcam subsetores intensivos em ciência e conhecimento. Investimentos em infraestrutura física, social e digital exercem expressivos efeitos multiplicadores de produção, renda e emprego em outros setores, além de transbordamentos tecnológicos para a economia, através das atividades de pesquisa e desenvolvimento.

O governo deve fazer escolhas estratégicas, priorizando segmentos em que o Brasil tenha maior potencial de alcançar vantagens comparativas dinâmicas. Os candidatos óbvios são:

  • Energia eólica e solar, em virtude da abundância exuberante dos recursos naturais básicos e dos vínculos para frente (geração de renda e demanda) e para trás (demanda de componentes) com outros setores;
  • Complexo industrial da saúde, que, alavancado pela demanda do SUS, tem enorme potencial de viabilizar escalas competitivas e fomentar a produção de equipamentos médico-hospitalares e produtos farmacêuticos;
  • Reindustrialização da indústria química, especialmente fertilizantes e pesticidas, já que a expressiva demanda de insumos por parte do agronegócio não justifica os déficits comerciais existentes atualmente;
  • Nichos da indústria aeroespacial, que, em face da demanda do Ministério da Defesa, têm capacidade potencial de produção e desenvolvimento tecnológico de aviões e parte dos equipamentos e componentes;
  • Industrialização no Norte e Nordeste, com foco nos setores intensivos em trabalho, como vestuário, calçados e alimentos processados;
  • Serviços da indústria de informação e comunicação, notadamente softwares.

No período da substituição de importações (1950-1990), os estímulos combinavam barreiras à importação e subsídios diversos. Nossa proposta, porém, privilegia quatro instrumentos: i) compras governamentais; ii) conteúdo local; iii) créditos dos bancos de desenvolvimento, inclusive subsídios, em alguns casos; e iv) promoção de exportações de manufaturados. Além disso, o governo deve promover uma reforma das alíquotas de importação no Brasil. Não se recomenda qualquer liberalização comercial radical, mas a reestruturação do sistema de tarifas aduaneiras de acordo com o princípio da escalada tarifária: alíquotas de importação menores (e, se for o caso, zero) para bens de capital e bens intermediários e alíquotas maiores para bens finais. Nos segmentos prioritários, as alíquotas devem ser maiores, mas no nível estritamente necessário para equalizar preços domésticos a internacionais, conferindo proteção temporária às empresas brasileiras para que consigam percorrer a curva de aprendizado tecnológico.

O risco de fracasso da política industrial será minimizado se o governo brasileiro não repetir erros pregressos. Dois requisitos são essenciais para o sucesso das missões propostas: i) governança e cooperação entre instituições públicas e privadas, quer na ampliação dos canais de informação, quer na cobrança de resultados efetivos por parte das instituições públicas de fomento; e ii) harmonização da política industrial com as demais políticas públicas, inclusive as encarregadas da política macroeconômica, incluindo o Banco Central do Brasil. Afinal, foram as taxas de juros reais extremamente elevadas e a sobrevalorização do real brasileiro os principais fatores explicativos do fracasso das políticas industriais adotadas entre 2004 e 2014. Assim, o sucesso da política industrial proposta depende, fundamentalmente, das políticas macroeconômicas (monetária, fiscal e cambial) que vigorarão nos próximos anos.

André Nassif é economista e professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de “Desenvolvimento e Estagnação: o Debate entre Desenvolvimentistas e Liberais Neoclássicos”, Editora Contracorrente, 2023.

NOTAS

1. Textos para Discussão 351, UFF, 2021. www.economia.uff.br/wp-content/uploads/ sites/584/2021/11/TD-351.pdf

 

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